quinta-feira, 11 de maio de 2017

Escrever na areia

Escrever, hoje, é algo comum e mesmo indispensável, ao menos no mundo ocidental. Na Antiguidade, porém, a escrita não era para todos. Egípcios e mesopotâmios tinham especialistas em escrita - os escribas -, donde se vê que, nesse tempo, a capacidade de escrever era, por si mesma, uma profissão. No caso da Grécia e de Roma Antigas, o desenvolvimento cultural conduziu à ideia de que o estudo, a começar pela escrita, era importante para a formação da elite política. A capacidade de escrever, tanto quanto a de falar em público, passou a ser vista como algo essencial ao exercício da cidadania. 
Os papiros e pergaminhos, suportes frequentes para escrita daquilo que se pretendia durável, eram caros, de modo que nem todo mundo tinha acesso a eles. Nas escolas do mundo romano era usual que as crianças escrevessem com pequenos bastões sobre tabuinhas cobertas de cera, que tinham a vantagem da reutilização. Entre os antigos gregos não era nenhuma raridade que pequenas anotações fossem feitas em pedaços de cerâmica.
E quanto àqueles rabiscos comuns do dia a dia, aqueles que ninguém acreditava merecessem a honra de ficar para a posteridade? 
Temos uma pista do que acontecia através de um episódio referido por Aurelius Augustinus (ou Santo Agostinho, se preferirem) em suas Confissões. Afirmava ele ter-se dedicado, quando jovem, ao estudo das Categorias de Aristóteles, obtendo delas uma compreensão excelente. O mesmo não acontecia com seus companheiros que, a despeito de muito esforço, não conseguiam meter na cabeça o pensamento do filósofo estagirita. Augustinus, disposto a ajudar os amigos, tecia comentários, dava explicações e (eis aqui o que mais nos interessa), fazia esboços na areia. Essa era uma prática comum entre povos antigos (¹), embora hoje esteja restrita, em quase exclusividade, ao universo das brincadeiras infantis.
Mais de mil anos depois de Santo Agostinho, outro escritor traçaria palavras na areia, e olhem leitores, que também era em latim. O jovem missionário José de Anchieta, detido entre os tamoios, ocupou-se, no Século XVI, em escrever versos de seu poema dedicado à Virgem. Como naquele momento não dispunha de papel e queria memorizar o que ia compondo, traçava as palavras ao longo da praia de Iperoig (²). No tempo de Agostinho ou no de Anchieta, escrever na areia tinha um grave defeito: a transitoriedade. 

(1) Já imaginaram, leitores, quanta coisa interessante deve ter-se perdido por causa desse costume?
(2) Muito provavelmente localizada no litoral norte do atual Estado de São Paulo.


Veja também:

8 comentários:

  1. Conclusão: funcionava como uma espécie de "folhas voláteis de memória ram"...
    A mim, agrada-me pensar, quando vejo alguém escrever na areia da praia que está a enviar uma desesperada canção de amor pelas ondas do mar...

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    1. Gostei da comparação rsrsrsss...

      Já quanto a mandar uma "canção de amor pelas ondas do mar", parece coisa dos cancioneiros medievais. Só falta o som de um alaúde!

      Falando sério: a última vez que vi alguém escrever na praia, o "memorando" era sobre futebol - nem Santo Agostinho e nem Anchieta iriam entender alguma coisa.

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  2. E hoje? São tantas as formas de registros virtuais, que não faltaram materiais para os historiadores do futuro. Todas noites, eu e um amigo de SP,trocamos ideias via face: sobre nossas buscas por emprego, sonhos de voltar a estudar, oportunidades, amores... Tudo isso, de certa forma, diz muito sobre o cenário atual do país... Interessante pensar nisso, né? que estamos deixando novos registros, ;)

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    1. Sim, é interessante pensar que deixamos nossas "marcas" para o futuro.

      Outra questão, que também considero relevante: Como será que historiadores do futuro irão interpretar nossos registros? Se algumas interpretações do passado servirem como pistas, dá pra imaginar situações inusitadas.

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  3. Cada um, para melhor ser entendido, socorre-se daquilo que tem à mão, embora no caso da areia estivesse mais ao alcance do pé. :)

    Um bom final de semana, Marta :)

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    1. Precisei parar de rir, para só agora começar a responder rsrsrssss...
      Cada tempo tem seus hábitos, não é mesmo?

      Tenha um ótimo final de semana! :-)))))))))))))

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  4. Marta,
    Muito expressiva essa
    sua publicação.
    Aqui no ES há uma
    uma programação que tem
    por nome "Os passos de Anchieta",
    Pessoas se juntam e caminham
    de Vitória (capital) até Anchieta (depois de Guarapari) é um ato de fé e de cultura local. Cada participante leva um bastão
    como Anchieta caminhava e parava para escrever na areia.
    Bjins
    CatiahoAlc.

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    1. Isso é muito interessante! Acho que lembra um pouco as peregrinações medievais, algumas delas existindo até hoje (como a do Caminho de Santiago). Muito válido, certamente, para preservar a memória de Anchieta e da colonização.

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