terça-feira, 30 de maio de 2017

Incêndios durante a estiagem

Incêndio no cerrado

Vejam, leitores, estes versos de A Confederação dos Tamoios:

"Era o tempo em que o sol abrasa tudo,
Em que as secas florestas se incendeiam,
E se extinguem as águas das torrentes."

De saída, cabe um reparo: a obra citada de Gonçalves de Magalhães (da chamada Primeira Geração Romântica) supõe descrever a natureza do Brasil no território em que viviam os tamoios. Pois digo que a descrição está errada. Os tamoios viviam principalmente em terras dos atuais Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, áreas cuja vegetação nativa é a Mata Atlântica. Não tem cabimento, portanto, a descrição contida nos versos. Ela se aplicaria, com toda correção, ao que sucede no cerrado durante a estiagem. Na Mata Atlântica, mesmo na estação em que as chuvas são menos frequentes, a vegetação jamais perde o verde, embora a ocorrência de incêndios seja sempre uma possibilidade. Sabe-se, porém, que os tamoios, assim como outros povos indígenas, costumavam atear fogo, intencionalmente, a qualquer área na qual pretendessem fazer algum tipo de cultivo, um costume explicável por não disporem de ferramentas adequadas à derrubada de árvores.
Bombeiros apagando incêndio em uma área
de cerrado em Brasília (ao fundo,
a Esplanada dos Ministérios)
Já no caso do cerrado, incêndios ocasionais são até benéficos e garantem a sobrevivência do bioma - há sementes que só germinam depois do fogo. Basta um raio, e as chamas proliferam. A questão é que, com a presença crescente de bípedes humanoides sem nenhum respeito pelo ambiente, o inferno, que era eventual, tornou-se corriqueiro. Gente descuidada e descumpridora das leis atira pontas de cigarro à beira das estradas (¹), e, não mais que alguns minutos mais tarde, o incêndio se alastra, por estar a vegetação brutalmente ressequida em razão da estiagem prolongada. Com o crescimento dos núcleos urbanos, o problema é gravíssimo, já que as chamas, por vezes, chegam muito perto das cidades. Exageradamente perto.
No Século XIX, quando a Expedição Langsdorff percorria parte do Brasil Central, Hércules Florence notou que as queimadas em áreas de cerrado eram usadas deliberadamente, na suposição de que facilitariam a prática da agricultura e/ou favoreceriam o desenvolvimento das pastagens. O desenhista francês conjecturou, com acerto, que cedo ou tarde a natureza acabaria por cobrar o preço dos repetidos incêndios:
"De pronto não nos era fácil adivinhar a razão por que todos os troncos e ramos das tortuosas árvores desses cerrados negrejavam como azeviche e o capim resplendia de verde tão uniforme. É que o fogo por ali passara e que tudo ressurgia simultaneamente; devendo esse hábito do caipira, que sem trabalho quer todos os anos renovar as pastagens para seu gado, produzir a esterilidade dessas belas regiões, caso não repare cultura mais inteligente tantos e tão seguidos estragos." (²)
É fácil constatar que, na primeira metade do Século XIX, os danos ambientais provocados pelas queimadas recorrentes não eram ainda compreendidos, em particular entre a população que vivia, no interior do Brasil, à margem de qualquer progresso científico. Muito estranho, porém, é que em nosso tempo, quando somos quase soterrados por informação (em quantidade e qualidade), ainda haja quem pense ser aceitável atear fogo à vegetação, da maneira mais inconsequente, seja lá pelo motivo que for.

O cerrado renasce após um incêndio - fotografia infravermelha

(1) Pior que isso: o incêndio é, às vezes, deliberado.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 160.


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