terça-feira, 23 de maio de 2017

Caça aos ratos

Ratos são nojentos e propagam doenças. É verdade que, como todos os seres vivos, têm seu lugar no ambiente, mas vivem extrapolando os limites razoáveis, com um crescimento populacional indescritível. Bem, se não fossem assim, não seriam ratos.
Quem vinha viver no Brasil Colonial, fosse por vontade própria ou não (¹), logo percebia que ratos eram mesmo um problema. Nos canaviais, por exemplo, deram muita dor de cabeça, e não só nos primeiros tempos do cultivo de cana-de-açúcar (²). Disso sabemos pelo que escreveu frei José Mariano da Conceição Veloso, em O Fazendeiro do Brasil:
"Requerem as canas serem mondadas cuidadosamente, tanto que vier crescendo a erva bravia. Fica-se livre deste trabalho quando elas, pelo seu crescimento, podem sufocar a erva que lhes nascer junto. Deve-se afastar toda a espécie de gado dos canaviais, e perseguir os ratos, que são mui gulosos delas." (³)
Holandeses que tentaram ocupar a Ilha de Fernando de Noronha no Século XVII tiveram que desistir do projeto. Adivinham o motivo, leitores? Sim, ratos, de acordo com o que informou J. Nieuhof (⁴), que esteve no "Brasil holandês" entre 1640 e 1649. E há também o famoso caso do primeiro casal de gatos que foi vendido em Cuiabá no ano de 1725 por nada menos que uma libra de ouro. Os bichanos ainda não existiam por lá quando uma praga de ratos nas plantações de milho e feijão levou a fome a essa rica área de mineração. Entende-se, portanto, a brutal inflação felina.
Que fazer quando os ratos eram uma calamidade? 
Pelo que lemos em alguns autores dos tempos coloniais, não era incomum o recurso às práticas indígenas para dar jeito nas infestações de murídeos. Gabriel Soares referiu, no Século XVI, que havia índios que usavam venenosos baiacus assados para exterminar ratos, mas não explicou como, exatamente, isso acontecia:
"Baiacu é um peixe que quer dizer sapo [...]; com os quais peixes assados os índios matam os ratos [...]." (⁵)
Outro que relatou, com certo humor, um método indígena de combate aos ratos, foi o capuchinho francês Yves d'Évreux, que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614:
"Há outra caçada de um verme [sic], tão divertida e agradável [...], é a dos ratos domésticos e selvagens.
[Os indígenas] não comem os domésticos, ao menos que eu saiba, porém caçam-nos cruelmente, porque se entra um rato em qualquer casa, reúnem-se todos os habitantes, uns com arcos e outros com flechas e paus, e com auxílio também de alguns cães (⁶) não escapa o pobre rato." (⁷)
D'Évreux teve o cuidado de especificar, ainda, o que se fazia com o rato morto:
"Depois de morto é espetado na ponta de uma vara fincada no meio da aldeia, para servir de alvo ao exercício das flechas dos meninos." (⁸) 

Rato, de acordo com uma publicação do Século XVI (⁹)

Mudanças políticas não acabam com ratos (óbvio, ou nem tanto). Após a independência continuava a haver ratos em quantidade no Brasil, e nem mesmo a capital do Império escapava ao domínio dessas repugnantes criaturinhas. Schlichthorst, um militar alemão contratado para o Segundo Batalhão de Granadeiros, relatou que frequentava, às vezes, algum modesto restaurante francês (sempre que seu magro salário, que vivia atrasado, permitia), indo, depois, para o lugar em que morava, onde roedores insistiam em fazer residência:
"Ali [num restaurante francês], tomo um copo de ponche, ouço muita asneira enfadonha e vou, afinal, para minha casa dormir esplendidamente, se os mosquitos e ratos deixarem, pois eles coabitam em toda choupana e em todo palácio da muito heroica cidade dos muito leais cariocas." (¹⁰)

(1) Havia, como se sabe, "colonizadores" forçados, ou seja, aqueles que, tendo cometido algum crime em Portugal, eram condenados a degredo no Brasil. Alguns ficaram tão felizes com a vida na América que nunca mais voltaram ao Reino.
(2) Uma planta que não era nativa do Brasil e que os ratos apreciaram muito.
(3) VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil  Tomo I, Parte II. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1799, p. 89.
(4) A primeira edição dos escritos de Nieuhof foi publicada na Holanda em 1682.
(5) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 291 e 292.
(6) Tanto poder de fogo para um animal tão pequeno?!
(7) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 153 e 154.
(8) Ibid., p. 154.
(9) GESNER, Conrad. Icones Animalium Quadrupedum Viviparorum et Oviparorum. Zürich: Christof Froshover, 1560, p. 114.
(10) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 88.


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2 comentários:

  1. Tudo na natureza se quer em equilíbrio. Portanto, a praga de ratos poderia ser explicada pela ausência de predadores. Daí, como a Marta diz, a inflação dos felinos. Outra solução poderia ser um flautista, pelo menos nas fábulas costuma resultar...
    Beijinho, um lindo domingo
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. O flautista de Hameln? Não, muito perigoso... rsrsrsssss

      Tenha uma ótima semana!

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