quinta-feira, 29 de junho de 2017

Luditas

A manhã fria e cheia de névoa não se apresenta como um convite a sair de casa. Mas isso não é uma opção. A família toda (exceto o pai) deixa a mísera habitação e caminha para a fábrica em que trabalha. Nas ruas imundas, o esgoto corre a céu aberto e ratos disputam espaço com os pés dos que passam. O cheiro é péssimo. Há muita fumaça e as pessoas têm um aspecto pouco saudável. Entre os que não trabalham - porque não querem, porque não podem ou porque não acham emprego - o alcoolismo não é nada incomum.
Já na fábrica, a mãe inicia a dura rotina da tecelagem. Os filhos são ocupados em tarefas menores. Para todos, a jornada será longa, como acontece em seis dias de cada semana.
Os trabalhadores estão desassossegados. Circulam notícias, que ninguém quer comentar em voz alta, de que, em alguns lugares, operários descontentes estão destruindo máquinas e até incendiando fábricas. 
Luditas - quem eram eles?
Em History and Antiquities of Nottingham encontramos a informação de que foi em 1811 que as agitações começaram. Embora, na época, as autoridades locais não tivessem muita simpatia por qualquer revolta social, eram, ainda assim, capazes de reconhecer o lamentável estado de pauperização em que viviam os trabalhadores. No dia 11 de março, centenas de operários se reuniram para protestar em praça pública; a polícia tratou de dispersá-los, mas, à noite, algo aconteceu: "Homens saídos do vilarejo de Arnold vieram e quebraram sessenta e três teares, a maioria deles pertencente ao Sr. Broksop." (¹) 
Nas semanas imediatas não houve pausa na destruição de equipamentos, e os incêndios continuaram. Embora a polícia agisse para capturar os responsáveis, poucos foram presos, porque, segundo a mesma fonte, os homens estavam unidos "por juramentos ilícitos, usavam disfarces e eram organizados em sua obra de destruição" (²).  Ao que parece, leitores, foram esses os primeiros incidentes envolvendo luditas, ou seja, trabalhadores insatisfeitos que, intencionalmente, quebravam maquinário e incendiavam fábricas. Por cinco anos, fatos semelhantes ocorreram, não só no condado de Nottingham, como nos de Leicester, Lancaster, Derby e York.
Mas de onde, afinal, veio o nome de "luditas"? Aqui, leitores, as fontes divergem, como costuma ocorrer, em se tratando de um movimento popular e, por sua natureza, ilegal. History and Antiquities of Nottingham atribui a origem da palavra ao nome de certo rapazote insolente, Ludlam, originário de Leicestershire, que teve um entrevero violento com o próprio pai. O líder de cada bando de destruidores de fábricas era chamado "General Ludd" ou "Ned Ludd". Outra explicação para o nome "ludita" seria esta: Ned Ludd seria um menino que trabalhava em uma fábrica e que, por fazer o trabalho com menos habilidade do que se esperava, fora espancado pelo capataz e, em consequência, morrera. Vejam que este é um nó difícil de desatar.
A despeito da origem incerta, o modo de ação dos luditas mostra que havia, mesmo, algum grau de organização:
"Aquele que toma sobre si esse título [General Ludd] tem o comando absoluto dos homens de seu bando, que, armados com espadas, pistolas, espingardas, etc., entram nas fábricas e destroem as máquinas [teares], depois do que se reúnem a pouca distância da cena de destruição, onde o líder chama cada um dos homens, que respondem por certos números, e, se todos lá estão e a tarefa da noite terminou, ele dispara um tiro de pistola; todos, em seguida, se separam, indo para as respectivas casas, onde removem os disfarces negros com que se cobriam." (³)
Recompensas generosas em dinheiro foram oferecidas para favorecer a captura de luditas, mas mesmo essa tentação à cobiça, com a garantia adicional do anonimato, foi de pouco resultado. 
Consciência de classe ou desespero? A existência dos luditas, enquanto produto da Revolução Industrial inglesa, parece sugerir que, malgrado as condições extremamente desfavoráveis em que vivia a quase totalidade da população trabalhadora, havia uma parcela que tinha um grau nada desprezível de consciência quanto às mudanças que se operavam, mudanças essas que alterariam desde as raízes e irreversivelmente as relações de trabalho e produção.

(1) ORANGE, James. History and Antiquities of Nottingham vol. II. London: Hamilton, Adams, and Co., 1840  p. 874.
(2) Ibid.
(3) Ibid., p. 875; todas as citações de History and Antiquities of Nottingham que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


Veja também:

4 comentários:

  1. O peso das amarras, mais cedo ou mais tarde, acaba sempre por suscitar a revolta.

    Um bom final de semana, Marta :)

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    1. Já viu alguma opressão durar para sempre?

      Tenha uma ótima semana!

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  2. No Brasil de hoje, precisamos de lícitas, frente aos desmandos dos três poderes constituídos.

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    1. Precisamos de gente com um nível de civismo e competência como nunca antes tivemos.

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