terça-feira, 29 de agosto de 2017

Casacas sob o sol da capital do Império

"Será útil que a civilização acabe com esse uso de andar de jaqueta diante dos contemporâneos e aparecer de casaca à posteridade."
Machado de Assis, Diário do Rio de Janeiro, 12 de junho de 1864

Qualquer um que leia obras escritas por romancistas brasileiros do Século XIX pode, sem muito esforço, descobrir que na capital do Império, gente "de respeito", como se dizia, andava vestida de modo muito impróprio - impróprio para o clima do Rio de Janeiro, mas apropriado, sim, segundo as regras de etiqueta da época. Corram os olhos, leitores, sobre os exemplos seguintes, e já verão o que era a moda masculina sob o sol carioca:

"Bravo! exclamou Filipe, entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho."
Joaquim Manuel de Macedo, A Moreninha

"Alice [...] trocou algumas palavras em segredo com o pai, e tirando-lhe do bolso da casaca uma caixinha oval de tartaruga aproximou-se de Mário, que estava de pé apoiado no recosto da cadeira de D. Francisca."
José de Alencar, O Tronco do Ipê

"Tenho grandes salas, ricos tapetes, cadeiras de estofo, soberbos jantares, mas preciso de gente de casaca, para encher estas salas, pisar esses tapetes, sentar-se nessas cadeiras e comer estes jantares."
José de Alencar, Sonhos d'Ouro

"Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo."
Machado de Assis, O Alienista

"Rubião, calado, recompunha mentalmente o almoço, prato a prato, via com gosto os copos e os seus resíduos de vinho, as migalhas esparsas, o aspecto final da mesa, em vésperas de café. De quando em quando dava um olhar à casaca do criado."
Machado de Assis, Quincas Borba

Então, o que acham? O problema é que usar casaca não era simplesmente uma opção. Daniel P. Kidder, missionário metodista que esteve no Brasil entre 1837 e 1840, descreveu muito bem as exigências quanto ao vestuário de quem pretendia pôr os pés em lugares de maior cerimônia:
"Presume-se que todo indivíduo de respeito se vista bem e com propriedade. Daí o fato de se não poder entrar nas repartições públicas, no Museu ou na Biblioteca Nacional, sem ser "de casaca". O paletó-saco constitui a birra principal das regras de etiqueta, no Brasil, e, conquanto se adapte melhor ao clima que qualquer outra roupa e seja geralmente usado em casa, é rigorosamente condenado o seu uso na rua. Assim é que as pessoas respeitáveis devem usar um capote quando saem, ou, se preferirem, um casaco relativamente pesado." (¹)
Lembrando aos leitores da geração Y que não havia ventiladores elétricos e muito menos ar-condicionado no Século XIX, consideremos, agora, o que escreveu o pintor François Biard, ao tratar da mania dos trajes cerimoniosos. Notem, por favor, que Biard, de nacionalidade francesa, esteve no Rio uns vinte anos após Daniel Kidder, e foi muito menos benevolente em suas observações:
"No Brasil todo mundo se veste de preto, não somente para ir às festas, mas, também, durante o dia, muito embora o sol derreta a todos de suor." (²)
Acrescentou, ainda:
"[...] Percorri a cidade [do Rio de Janeiro] [...]. Enverguei, para esse passeio, as roupas leves compradas na Belle Jardinière, mas me senti acanhado ao reparar que todos me olhavam com espanto semelhante ao que manifestávamos (³) antigamente diante de um árabe com seu albornoz ou um grego com sua saia pregueada. Por toda parte o preto predominava. Os caixeiros das lojas, manejando as vassouras, já vestiam, às sete da manhã, elegantes redingotes de casimira. O branco, neste país, onde o preto deveria ser castigo para os galés, era desconhecido." (⁴)
Biard estava errado. Havia, sim, quem usasse branco - os escravos! Vejam, portanto, leitores, que além de imitar o que era moda na Europa, era para se diferenciar dos cativos que a gente de condição livre se submetia à tortura das casacas, mesmo quando o clima e a saúde recomendavam coisa bem diferente.

Convento de Santo Antônio no Rio de Janeiro, Século XIX;
em primeiro plano, dois cavalheiros usando casaca e cartola (⁵).

(1) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, pp. 142 e 143.
(2) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 12.
(3) Biard se refere aos franceses.
(4) BIARD, Auguste François. Op. cit., p. 32.
(5) ____________ O Brasil Pitoresco e Monumental. Rio de Janeiro: E. Rensburg, 1856. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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