terça-feira, 19 de setembro de 2017

Bandeiras de apresamento

Bandeiras de apresamento eram grupos de pessoas armadas (geralmente paulistas), que iam ao interior da América do Sul capturar indígenas para escravização. A princípio os ataques eram dirigidos contra aldeias cujos habitantes, sem consciência do perigo que corriam, ainda viviam segundo o estilo de vida tradicional entre populações ameríndias. Mais tarde, porém, bandos armados passaram a atacar também as missões, nas quais indígenas catequizados viviam em companhia de missionários, quase todos jesuítas
Haveria razões para essa mudança de estratégia?
Sim. Aqui estão, leitores, algumas delas:
  • As missões, reunindo catecúmenos provenientes de vários lugares, tinham, como regra, uma população consideravelmente maior que as aldeias indígenas comuns;
  • Tendo abandonado seu modo de vida tradicional, os indígenas das missões não costumavam andar armados (¹);
  • Indígenas das missões aprendiam, com os padres, técnicas agrícolas, além de vários ofícios (pedreiro, carpinteiro, alfaiate, etc.), e eram, portanto, considerados mais valiosos, quando escravizados.
O ataque maciço às missões do Guayrá começou em 1628, segundo depoimento do padre Antonio Ruiz de Montoya, célebre na defesa dos indígenas, tendo ido mesmo à Espanha protestar contra a injustiça que lhes era feita. Em suas palavras, foi assim que tudo aconteceu:
"Entrou esta gente [...] por nossas reduções, cativando, matando e despojando altares. Nós, três padres, fomos às suas cabanas e alojamentos, onde tinham já muita gente cativa, e lhes pedimos que nos dessem os que haviam aprisionado e que estavam, muitos deles, acorrentados. Gritaram como loucos frenéticos, dizendo: Prendam-nos, prendam-nos, que esses são traidores!, e juntamente dispararam alguns tiros de arcabuz, com que feriram oito ou nove índios que nos acompanhavam. Um deles caiu morto ali mesmo, de um tiro que lhe deram na coxa, e o padre Cristóbal de Mendoza saiu ferido de uma flechada. Prenderam o padre José Domenech, dizendo-nos [...] que não éramos sacerdotes, mas demônios, hereges, inimigos de Deus, e que pregávamos mentiras aos índios. Um deles apontou uma escopeta em direção ao meu peito, e eu abri a roupa para que, sem nenhuma resistência, o tiro entrasse." (²)
Não seria ainda dessa vez, no entanto, que um jesuíta iria tombar pela mão de um bandeirante. 
Montoya tem contra si o fato de que, ao passar metade de seu livro Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus contando suas aventuras e façanhas como missionário, narrou muita coisa que qualquer pessoa séria, com muito boa vontade, pode apenas reconhecer como vinda de um espírito crédulo, quando não ingênuo. Por outro lado, mesmo assumindo que houvesse algum exagero da parte do religioso, é inegável que integrantes de bandeiras de apresamento, depois das estripulias entre indígenas que viviam livres nas florestas, julgaram mais fácil e mais conveniente atacar as reduções - se não fosse assim, como explicar a existência de numerosa escravatura de origem indígena, que paulistas orgulhosos - como o genealogista Pedro Taques, por exemplo, autor da Nobiliarchia Paulistana - faziam questão de referir? Amador Bueno (o "Aclamado") tinha centenas de índios escravizados, convertidos à força:
"Teve grande tratamento e opulência por dominar debaixo de sua administração muitos centos de índios, que de gentio bárbaro do sertão se tinham convertido à nossa santa fé [sic], pela indústria, valor e força das armas, com que os conquistou Amador Bueno em seus reinos e alojamentos." (³)
Pedro Taques mencionou, ainda, que Manuel Preto chegou a ter novecentos e noventa e nove (!!!) índios escravizados; esse número, ainda que exagerado em mais de um sentido, não devia ser incomum, já que, também na Nobiliarchia Paulistana, o mesmo autor, falando de paulistas do Século XVII (⁴), afirmou que "muitos havia que possuíam debaixo de sua administração quinhentos, seiscentos e setecentos índios, que se ocupavam no trabalho da agricultura em copiosas searas de trigo, plantas de milho, feijão, legumes e nos algodoais".
Para além de tudo isso, vale ressaltar que em São Paulo ninguém escondia o fato de que paulistas invadiam missões para aprisionar índios, fazendo não poucos estragos em tais ocasiões. Pedro Taques registrou, entre vários outros, o caso do bandeirante Manuel Bicudo de Campos, que teria atacado missões não menos que vinte e quatro vezes, sem poupar nem mesmo os jesuítas. Certo dia, notando que os indígenas estavam prontos a lutar pela liberdade, sem mais delongas cortou o fio da existência ao missionário que os liderava: "[...] Fez pé atrás e tomando a sua arma de fogo fez tiro ao tal mestre de campo jesuíta (⁵), que ainda estava montado; e quando o corpo caiu do cavalo em terra, já a alma o tinha deixado." (⁶) 
Foi assim, uns através da catequese, outros à procura de ouro ou de gente para escravizar, que se explorou o território ainda desconhecido da América do Sul. Conforme reconheceu Pedro Taques, "sem o interesse do serviço dos índios não teriam feito os paulistas tão dilatadas e pasmosas jornadas pelo sertão, que ocasionaram os descobrimentos que hoje estão povoados" (⁷).

(1) Autoridades coloniais, quando precisavam de homens para lutar, podiam requisitar indígenas das missões; estes combatiam, porém, usando apenas as armas habituais entre ameríndios, e não com armas de fogo. Havia, inclusive, uma proibição quanto ao fornecimento de armas de fogo para indígenas, contra a qual lutavam os missionários, tendo em vista a necessidade de defesa contra os bandeirantes de São Paulo.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. O texto citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarchia Paulistana.
(4) Contemporâneos, por conseguinte, do padre Antonio Ruiz de Montoya.
(5) A fala de Pedro Taques sugere que ele próprio não tinha grande estima pelos jesuítas.
(6) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Op. cit.
(7) Ibid.


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2 comentários:

  1. Já lhe disse que sou muito feliz por ter nascido no século XX? Acho que sim, inúmeras vezes. Sou realmente. Viver nesses tempos sem lei nem ordem devia ser aterrorizador.
    Abraço

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