quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Quando a Corte viajava

Lembram-se de que nos contos de fadas os reis saíam a passear, de vez em quando, por seus domínios? Pois isso também acontecia na vida real. Os motivos variavam, desde uma simples excursão de lazer a uma fuga disfarçada, em situação de guerra. Foi assim, durante séculos, em quase todas as monarquias.
As leis portuguesas tinham instruções relevantes quando o assunto era alguma viagem do rei e seu séquito de nobres e funcionários. Lemos no Livro I das Ordenações do Reino (¹) que competia ao almotacé-mor providenciar que os caminhos por onde passaria o cortejo real estivessem em bom estado:
"Ao almotacé-mor pertence mandar limpar e refazer os caminhos, calçadas e pontes nos lugares onde estivermos [...]." (²)
Vejam, leitores, que a necessidade de fazer arranjos nas áreas em que o rei poria as vistas sinaliza que, muito provavelmente, as coisas não andavam, de ordinário, em perfeita ordem. Vale a mesma ponderação quanto ao regulamento sobre a limpeza dos lugares públicos, outra atribuição do almotacé-mor:
"Mandará apregoar, tanto que a algum lugar cheguemos (³), que tenham os vizinhos as praças e ruas limpas, e que ninguém lance sujidade alguma nos ditos lugares, sob a pena que lhe bem parecer, não passando de quinhentos réis, e mais serem obrigados a pagar o que custar limpar a dita sujidade." (⁴)
Cumpre reconhecer que, tendo em conta as condições de higiene vigentes nas vilas e cidades em séculos passados, a instrução não era descabida. Havia, porém, muito mais a ser feito, antes que os reais pés de sua real majestade chegassem a algum lugar. Afinal, a Corte não fazia fotossíntese, sendo, portanto, necessário prover, com antecedência, os alimentos que garantiriam a sobrevivência de tão indispensáveis figuras. Mais trabalho para o almotacé-mor:
"O almotacé-mor saberá de nós os lugares por onde e para onde havemos de ir, para mandar recado a cada um deles, que façam prestes mantimentos em tal maneira, que quando chegarmos, haja em abastança o que for necessário." (⁵)
Finalmente, em recordação de que nesses tempos o peso do transporte recaía (literalmente) sobre cavalos, mulas e outros seres de quatro patas, era preciso que houvesse, de prontidão, palha suficiente para os animais:
"Em cada lugar onde formos, [o almotacé-mor] haverá logo do escrivão da Câmara [...], e saberá parte de todos os palheiros, e por seus alvarás mandará dar palha aos da nossa Corte [...]." (⁶)
Abusos, porém, eram formalmente proibidos:
"No dar da palha haverá respeito à estada, que aí houvermos de estar, segundo a que na Comarca houver, dando a cada besta para vinte dias uma rede, e pagar-se-á ao dono da palha o que pelo almotacé-mor for taxado. E o azemel que tomar a palha sem alvará, ou sem a pagar, seja preso, e da cadeia pague quinhentos réis, a metade para quem o acusar, e a outra para o dono da palha." (⁷)
Ninguém faz leis para proibir o que jamais acontece, não é? Imaginem, então, quando a Corte atravessou o Atlântico para sua mais longa viagem...

Embarque de D. João para o Brasil, na visão de Giuseppe Gianni (⁸)

(1) Compilação de leis que regiam Portugal e seus domínios, publicada no começo do Século XVII. A maioria dessas leis vigorava há muito tempo. Neste blog é seguida a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Ordenações do Reino, Livro I, Título XVIII, § 13.
(3) Percebam a insistência no uso do famoso "plural majestático".
(4) Ordenações, Livro I, Título XVIII, § 12.
(5) Ibid., § 3.
(6) Ibid., § 4.
(7) Ibid.
(8) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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