terça-feira, 31 de outubro de 2017

Regras "esquecidas" durante entradas ao sertão

Quem vivia nas povoações coloniais devia submeter-se a uma série de regras de conduta, tanto sociais quanto religiosas. Assim era, ao menos teoricamente. Aqueles, porém, que iam ao sertão em "entradas" ou "bandeiras" logo punham de lado as normas sob as quais, até então, tinham vivido. Às vezes faziam isso premidos pelas circunstâncias, mas, em outros casos, era o sabor da liberdade, desfrutado em meio às florestas, que provocava esse singular "esquecimento" das imposições do Estado ou da Igreja (que estavam, afinal, bem distantes).
Asserção feita, leitores, vamos à comprovação, fazendo uso, como exemplos, das confissões de pessoas que viviam no Recôncavo Baiano por ocasião da primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil (última década do Século XVI).
Um mameluco "confessando disse que haverá dezesseis anos mais ou menos que foi na companhia de Diogo Leitão, já defunto, ao sertão (¹) [...] para resgatar e fazer descer gentio (²) e nele andou nove ou dez meses, no qual tempo lá esteve uma Quaresma e nela e nos demais dias em que a Igreja defende (³) carne ele sem ter licença do ordinário e estando são e sem necessidade comeu carne, podendo escusá-la porque tinha outros mantimentos [...]" (⁴). Este mesmo homem admitiu, ainda, ter fumado com os índios, uma prática que não era bem-vista porque se supunha associada a rituais considerados pagãos pela Igreja. E mais: deu armas aos indígenas, declarando estar ciente de que, por esse motivo, era passível de excomunhão.
Outro indivíduo, também declarado mameluco, "confessando disse que ele vem [...] do sertão de Laripe onde andou ano e meio na companhia do capitão Cristóvão da Rocha, que foram para fazer descer gentio no qual tempo esteve lá uma Quaresma e nela e nos mais dias em que a Igreja defende carne comeu carne, e assim comeu toda a companhia, estando sãos e sem licença do ordinário, porém com necessidade porque não tinham outra coisa que comer" (⁵). A falta de outro alimento era considerada um atenuante.
Como quase sempre acontece em circunstâncias parecidas, havia quem delatasse os companheiros. Assim é que um terceiro mameluco, que também comeu carne na Quaresma, "disse [...] que viu o capitão da companhia em que ele estava no [...] sertão [...] dar uma espada e dois arcabuzes e pólvora e munição e tambor e bandeira de guerra e um cavalo e uma égua a um gentio, principal dos gentios [...] a troco de gentios escravos" (⁶). O lado curioso dessas confissões e delações é que elas vão, a pouco e pouco, ficando mais graves, ao menos sob o ponto de vista da Inquisição. É bastante provável que, percebendo que um companheiro estivera diante do inquisidor, outros entradistas achassem que, se queriam salvar a pele, deviam dizer o que sabiam, ainda que isso significasse acusar amigos e até parentes expedicionários. O Santo Ofício, como se sabe, era eficiente em provocar essa "magia".
Mais dois depoimentos, leitores, apenas para reforçar o que já vimos. Dizendo-se cristão-velho, um homem que participou de outra entrada contou que tendo ido "ao sertão fazer descer gentio na companhia de Domingos Fernandes [...] por muitas vezes e em diversos dias de Quaresma e sextas-feiras e sábados ele e a companhia comiam carne podendo escusar de a comer por terem favas e outras coisas com que se podiam manter sem comer carne" (⁷).
Finalmente, o próprio líder entradista Domingos Fernandes (que se declarou "nobre"), apareceu para depor e, entre muitos outros deslizes, "confessou que haverá vinte anos [...] foi ao sertão de Porto Seguro em companhia de Antonio Dias Adorno, à conquista do ouro, e no dito sertão ele usou dos usos e costumes dos gentios, tingindo-se pelas pernas com uma tinta chamada urucum e outra jenipapo e empenando-se pela cabeça de penas e tangendo os pandeiros dos gentios" (⁸). Mais que isso, "bebia com eles [indígenas] o seu fumo, que é o fumo de uma erva que em Portugal chamam a erva-santa" (⁹). Mais ainda, "teve sete mulheres gentias que lhe deram os gentios e as teve ao modo gentílico" (¹⁰). Á semelhança de muitos outros entradistas, deu armas aos indígenas e, concluindo sua esplêndida confissão, declarou que "muitas vezes disse que não queria vir-se nunca do sertão pois nele tinha muitas mulheres e comia carne nos dias defesos e fazia o mais que queria sem ninguém lhe tomar conta" (¹¹). Admirável sinceridade!
O senhor inquisidor advertiu a alguns dos confitentes sobre a gravidade de comer carne em dias proibidos, por ser "tão notável ofensa de Deus, que tão facilmente se pode escusar" (¹²). Quanto ao pecado de privar os povos indígenas da liberdade, não se registrou uma só palavra de recriminação.

(1) Uma comprovação de que as entradas ao sertão não estavam restritas à Capitania de São Vicente.
(2) Eufemismo para a captura e escravização de indígenas.
(3) Neste caso, "defende" significa "proíbe".
(4) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: 1922, p. 120.
(5) Ibid., p. 123.
(6) Ibid., p. 125.
(7) Ibid., p. 134.
(8) Ibid., p. 220.
(9) Ibid., p. 222.
(10) Ibid., p. 222.
(11) Ibid., p. 226.
(12) Ibid., p. 191.


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quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Eclipses

Historinha que vovó contava: Ia haver um eclipse solar, mas ela, menina pequena, não sabia disso. Brincava alegremente com o irmãozinho quando, por um motivo qualquer, começou um desentendimento, desses que ocorrem entre crianças a toda hora. A mãe (minha bisa) resolve, então, dar uma lição nos dois, e anuncia: Olhem só, o sol está se apagando, o mundo vai acabar; como é que vocês vão dar conta dessa briga no juízo final?!!
Eclipse lunar
Não é nenhuma surpresa, meus leitores, que povos antigos, desconhecendo explicações cientificamente válidas para os eclipses do Sol e da Lua, observassem esses fenômenos com pavor. Afinal, o que seria da vida na Terra se o Sol desaparecesse para sempre? Alguns, tendo por fundamento certos aspectos mitológicos, propunham explicações satisfatórias para a mentalidade da época e ajudavam a manejar o medo do desconhecido.
No Livro I de suas Histórias, Heródoto (¹) conta que, certa vez, durante uma batalha entre lídios e medos, ocorreu um eclipse solar, que fez o dia tão escuro quanto a noite. Assombrados, os dois exércitos teriam abandonado as armas para estabelecer um tratado de paz. O mais interessante é que Heródoto também assevera que o mesmo eclipse pacifista teria sido predito por Tales de Mileto (²), uma prova de que esse notável matemático dos tempos antigos foi capaz de fazer mais do que descobrir modos de atormentar jovens estudantes de geometria da atualidade.
Ainda de acordo com Heródoto (Livro VII das Histórias), um eclipse solar teria ocorrido durante as Guerras Médicas (entre gregos e persas). A súbita ocultação do sol deixou Xerxes, o soberano persa, bastante perplexo, a ponto de chamar seus magos para uma consulta - lembrem-se, leitores, de que, nesse tempo, não havia ainda uma distinção muito clara entre ciência e crenças mitológicas. Os tais magos, em defesa de seus próprios interesses, não tardaram em dar a seu temperamental monarca a informação de que os acontecimentos relativos aos gregos eram "profetizados" pelo Sol, sendo a Lua a responsável pelo que sucedia aos persas. Portanto, a ocultação do Sol significava que os gregos seriam eclipsados, isto é, derrotados. Como se sabe, o suposto vaticínio estava completamente errado, mas o registro de Heródoto, se correto, nos faz ver que, ao contrário de outros povos contemporâneos, os persas não eram ainda capazes de prever eclipses.
Entre os romanos, Tácito (³), ao tratar de uma rebelião de soldados (⁴), mencionou a ocorrência de um eclipse lunar, interpretado pelos revoltosos como um presságio favorável. Logo, porém, a Lua foi ocultada por nuvens, fato entendido como presságio desfavorável. Melhor para os comandantes, que se valeram do pavor entre a soldadesca para retomar o controle da situação.
Agora, leitores, saindo da Antiguidade para o Século XVII, termino com uma visão algo poética dos eclipses, que, segundo o jesuíta Antonio Ruiz de Montoya, era disseminada entre indígenas da América do Sul:
"Tinham como correta a doutrina de que há no céu um tigre (⁵) ou cão enorme, que em momentos de raiva comia a lua e o sol, a que nós chamamos eclipses, e quando isso acontecia mostravam tristeza e admiração." (⁶)
Montoya apenas não explicou como é que, depois de devorados, Sol e Lua voltavam a aparecer no céu...

(1) Século V a.C.
(2) Considera-se que Tales de Mileto provavelmente viveu entre os Séculos VII e VI a.C.
(3) c. 47 d.C. - 120 d.C.
(4) Annales, Livro I.
(5) Colonizadores tinham por costume fazer referência às onças-pintadas como "tigres".
(6) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. A citação foi traduzida por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 24 de outubro de 2017

Lavradores de cana-de-açúcar no Brasil Colonial

Ferramentas de um trabalhador rural
Nos tempos coloniais eram chamados "lavradores de cana-de-açúcar" os indivíduos livres, quase sempre sem capital para implantar um engenho, que cultivavam cana-de-açúcar servindo-se de trabalho escravo. A cana que produziam era fornecida para algum engenho das redondezas.
Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (¹), afirmou que na terceira década do Século XVII a Bahia tinha "cinquenta engenhos de açúcar, e para cada engenho mais de dez lavradores de canas". Portanto, os engenhos, além de utilizarem sua própria safra de cana para fazer açúcar, compravam ainda a produção de vários lavradores. Como era pouco comum a circulação de moeda nesse tempo, o açúcar que disso resultava era repartido entre o senhor de engenho e cada lavrador, em proporções previamente estabelecidas (²).
Sabe-se, porém, que as técnicas agrícolas empregadas pelos lavradores de cana-de-açúcar em suas respectivas propriedades eram, como regra geral, bastante primitivas. José Caetano Gomes, que queria sugerir melhorias no cultivo da cana, escreveu, quando já expirava o Século XVIII:
"Alguns lavradores, raríssimos, se têm servido do arado para fazer os regos, e de algum estrume nas terras já cansadas, porém o número é tão diminuto, que não merece entrar em linha de conta; o geral é limpar a terra a braço (³), ajuntar o capim, fazer covas com a enxada sem alinhamento, plantar sem estercar, fazer toda a plantação em um ou dois partidos, fugindo de terras virgens, porque assim como as muito estercadas ou estrumadas, fazem a cana a que se chama taioba, quero dizer, muito aquosa, muito oleosa e pouco açucarada." (⁴)
Técnicas agrícolas rudimentares, uso de enxadas como máximo de modernidade, pouco ou nenhum cuidado com a conservação do solo e, além de tudo isso, trabalho escravo. Poderia ser pior?

(1) O manuscrito foi concluído por volta de 1627.
(2) Era frequente que fosse metade para cada um.
(3) Dos escravos, certamente.
(4) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, p. 3.


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quinta-feira, 19 de outubro de 2017

É possível guardar um segredo?

A fabulosa história das orelhas de Midas


Midas, de infeliz memória, reinou na Frígia por volta do Século VIII a.C. - sim, estamos falando do desastrado rei que, segundo a lenda, adquiriu a duvidosa virtude de transformar em ouro tudo o que tocava. Entre o homem de verdade e o ser lendário vai, no entanto, uma grande diferença. É que, estranhamente, sabemos muito mais sobre o Midas mitológico do que sobre o sujeito "de carne e osso". Pesquisas arqueológicas comprovaram a existência desse rei - deixo a cargo de vocês, leitores, a diversão de tentar separar o mito da realidade. 
Os concursos de música eram comuns entre os antigos gregos, e os vencedores tinham elevada reputação, tanto quanto os que venciam em competições atléticas. Ora, em uma dessas ocasiões, Midas teria sido convidado a arbitrar um certame que tinha, entre os participantes, ninguém menos que Apolo. No julgar do rei, porém, a coroa coube a um humano, e não ao deus. Caso encerrado? Não!
Apolo, aparentando a virtude necessária a um bom competidor, não demonstrou, no momento, nenhuma insatisfação. A vingança, porém, veio com a máxima crueldade. Decorrido algum tempo, o funcionário encarregado de cortar os cabelos do rei começou a notar uma estranha transformação nas orelhas de seu amo, que não apenas estavam ganhando um tamanho descomunal, como também iam, aos poucos, adquirindo a semelhança de orelhas de burro. 
Que fazer? O real cabeleireiro não teve alternativa senão comunicar ao rei o que sucedia (como se fora possível que o próprio Midas não houvesse notado). A solução encontrada foi providenciar peruca e um tipo de chapéu para o rei, com a óbvia finalidade de ocultar algo que os súditos jamais deveriam ver. Isto feito, o cabeleireiro foi silenciado sob a ameaça do mais severo castigo.
Guardar segredos, como todo mundo sabe, não é tarefa fácil. O caso das orelhas do rei fazia cócegas no cérebro e na língua do cabeleireiro, quase levando esse distinto funcionário ao desespero. Então, um dia, já não suportando reter para si tão terrível segredo, procurou, em um bosque, um lugar que supunha completamente desabitado, e lá, cavando um buraco no chão, gritou, dentro dele: Midas tem orelhas de buuuuuuuuuuuuuuuurro!
Ufa, que alívio! Não parecia de modo algum uma inconfidência e, afinal, ninguém ouvira... Feliz da vida, o cabeleireiro voltou a seus afazeres. 
O tempo passou. Veio o inverno e, com ele, a neve. Veio a primavera e, com ela, a vegetação renasceu e brotaram as flores. O céu azul, as nuvens leves, o canto dos pássaros, tudo convidava a um passeio no bosque. Lá se foi nosso amigo cabeleireiro a desfrutar as horas de uma manhã junto à natureza. A brisa primaveril agitava docemente a vegetação - e eis aí o problema. Ao passar pelo lugar em que cavara o buraco no ano anterior, notou, aflito, que arbustos haviam crescido ao redor e, no compasso do vento, repetiam com meiguice: De buuurro, orelhas de buuuurro, Midas tem orelhas de buuuuuuuuuuuuuuuuuuuurro! Desnecessário é dizer que, em muito pouco tempo, todo o reino estava a par do lastimável segredo.
Não espero que vocês, leitores, suponham essa lenda uma realidade. Seria completa tolice. Mas os antigos gregos deixaram, nela, um ensinamento valioso: se tiverem um segredo e não quiserem de modo algum que venha a público, será melhor não contar a ninguém. Quando mais de uma pessoa sabe, já deixou de ser segredo. Esse foi o grande problema de Midas. 


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terça-feira, 17 de outubro de 2017

Quem nunca deveria pôr os pés no Brasil

Aventureiros sempre existiram, mas há que se reconhecer o fato de que era difícil arranjar bons colonizadores que viessem ao Brasil. Não estamos falando das hordas de condenados a degredo que, malgrado os protestos de administradores e missionários jesuítas, eram periodicamente despejados nas povoações litorâneas que começavam a nascer, já que esse tipo de gente não vinha porque queria, ainda que não poucos, depois de cumprida a pena, decidissem que era melhor ficar. A dificuldade estava em trazer trabalhadores qualificados, artesãos de vários ofícios ou que soubessem cultivar a terra. O medo do desconhecido e os boatos fantasmagóricos espalhados na Europa eram determinantes para intimidar eventuais interessados em tentar a vida no Continente há pouco "descoberto".
Propaganda de massa, no sentido que hoje conhecemos, não existia, mas alguns autores escreveram obras cujo propósito era convencer portugueses quanto à excelência da vida no Brasil. Pero de Magalhães Gândavo, por exemplo, afirmou, logo no início de seu Tratado da Terra do Brasil (¹):
"[...] Achei que não se podia de um fraco homem esperar maior serviço (ainda que tal não pareça) que lançar mão desta informação da terra do Brasil (coisa que até agora não empreendeu pessoa alguma) (²) para que nestes reinos se divulgue sua fertilidade e provoque as muitas pessoas pobres que se vão viver a esta província, que nisso consiste a felicidade e aumento dela." (³)
Ora, leitores, o livro de Gândavo só foi publicado muito tempo depois de sua morte. Ainda assim, dificilmente seria útil para convencer alguém a vir ao Brasil, porque o autor não economizou palavras em descrever ataques indígenas e cenas de antropofagia, sem falar nos animais, grandes e pequenos, mas quase sempre perigosos, que viviam à espreita dos incautos...
Quem resolvia correr o risco precisava de conselhos - é o que devia pensar o autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, um livro que fez muito sucesso no Século XVIII, recomendando a necessidade de adaptação ao modo de vida no Brasil: "É mais razão acomodar-se ao uso da terra, que pretender e querer trazer aos mais o costume de sua pátria." (⁴) Não parece sensato?
No começo do Século XVII franceses tentaram estabelecer uma colônia no Maranhão e, para a catequese dos indígenas, trouxeram alguns religiosos capuchinhos. Um deles, o padre Yves d'Évreux, escreveu um livrinho precioso, com uma chuva de informações (nem todas confiáveis, é verdade), que não aparecem nas obras de autores portugueses. Também ele procurou mostrar aos jovens de seu país que era interessante vir ao Brasil, principalmente para aqueles que, de nobres, não tinham muito mais que o título. Insistia que, com produtos da terra, não faltava alimento. Doenças? Sim, havia, como em qualquer outro lugar: 
"Se algumas pessoas se dão mal, não é novidade, pois em toda parte está a morte: assim são as moléstias.
Destes males não estão isentos reis e príncipes em países os mais agradáveis e salubres que se possa imaginar." (⁵)
Apesar disso, o bom padre d'Évreux reconhecia que havia um tipo de gente que jamais deveria pôr os pés no Brasil:
"Enganar-se-ia, porém, quem pensasse que as árvores produzissem patinhos assados, as corças, quartos de carneiro recentemente tirados do espeto, e o ar andorinhas bem cozidas, de forma que não havia mais trabalho do que abrir a boca e comer. Com tal fantasia não lhe aconselho que lá vá, porque arrepender-se-ia [sic]." (⁶)
Vejam, leitores, que d'Évreux tinha senso de humor. Cumpre apenas assinalar que, para os franceses, essa questão de vir ou não ao Brasil teve vida curta. Os portugueses logo retomaram o controle do Maranhão e o sonho de uma colônia francesa no Brasil se desmanchou.

(1) Escrito por volta de 1570.
(2) Não é verdade que ninguém ainda havia escrito sobre o Brasil. Anchieta, entre outros, já o fizera, ainda que seu objetivo não fosse o mesmo de Gândavo.
(3) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, pp. 27 e 28.
(4) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 6.
(5) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 185.
(6) Ibid., p. 185.


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quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Uso de selos ou sinetes por assírios, babilônios e outros povos

Impressão de um
selo assírio (⁴)
Entre os habitantes da Mesopotâmia (¹) na Antiguidade era corrente o uso de selos, também chamados sinetes, como forma de identificação pessoal. No Código de Hamurabi, por exemplo, que data do Século XVIII a.C., exigia-se que um documento escrito, para ser válido, fosse acompanhado do selo daquele que o outorgava. 
Impressão de um
cilindro assírio (⁵)
Os selos ou sinetes eram, quase sempre, pequenos cilindros (²) em que eram gravados desenhos que representavam deuses (³), figuras mitológicas, animais ou ainda algum texto; ao ser usado, o cilindro era rolado sobre uma placa de argila ainda mole, deixando a marca característica de seu proprietário. Para efeitos práticos, essa marca equivalia ao uso que fazemos de uma assinatura. Portanto, é fácil presumir a importância social dos artesãos que entalhavam sinetes, assim como a vigilância que se exercia sobre seu trabalho, a fim de assegurar que nenhum selo tivesse um "irmão gêmeo" para propósitos escusos.
Impressão dos sinetes dos reis do Egito
(à esquerda) e da Assíria (à direita) (⁶)
Uma vez que os selos eram amplamente utilizados por quase todos, dos reis aos humildes súditos, fica fácil entender a variedade de materiais adotados para sua confecção. Metais resistentes e baratos eram comumente empregados, mas também havia selos de marfim e de pedras e metais preciosos. Esses objetos, alguns rústicos, feitos sem grande perícia e cuidado, e outros até muito delicados, comprovando a maestria do artesão, são estudados, hoje, porque oferecem uma gama nada desprezível de informações sobre a cultura, a vida social e mesmo sobre as capacidades técnicas em uma época na qual a escrita não era ainda universalizada e, portanto, a cada indivíduo, mesmo não sendo um escriba, era facultado, através do uso de um selo ou sinete, autenticar documentos que fossem a expressão fiel de sua vontade quando adquiria uma propriedade, fazia doação de algum bem ou executava qualquer outra transação comercial. E, se era assim para o povo comum, tanto mais acontecia quando se tratava de um selo real, destinado a validar documentos que manifestavam a vontade de monarcas que se julgavam representantes dos deuses!
Impressão de um cilindro babilônico (⁸)
Selos ou sinetes foram usados também por outros povos, além dos mesopotâmios, e por muitos séculos (⁷), sempre com efeitos equivalentes aos de uma assinatura. Em lugar da impressão sobre uma placa de argila úmida, podia-se colocar um pouco de cera quente sobre a superfície desejada e então se aplicava o sinete, que deixava sua marca peculiar.
Para evitar que o proprietário de um selo ou sinete perdesse tão precioso objeto, vindo daí, talvez, consequências bastante desagradáveis, os sinetes passaram a ser feitos em forma de anel ("anel de sinete"), assegurando que, literalmente, estivessem sempre à mão. Entendia-se que um sinete, por sua natureza, devia ser manipulado apenas pelo proprietário, e entregá-lo aos cuidados de outra pessoa era prova de irrestrita confiança.

(1) Sumérios, assírios, babilônios, etc.
(2) Também havia selos em outros formatos, parecidos com pequenos carimbos, por exemplo.
(3) Muito comum, no caso do proprietário do selo ser alguém que se considerava sob a proteção de uma determinada divindade.
(4) LAYARD, Austen Henry. A Second Series of the Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853.
(5) Ibid.
(6) LAYARD, Austen Henry. Discoveries on the Ruins of Nineveh and Babylon. London: John Murray, 1853, p. 156.
(7) Sob circunstâncias especiais, ainda são usados.
(8) PERROT, Georges et CHIPIEZ, Charles. A History of Art in Chaldea & Assyria vol. II. London: Chapman and Hall, 1884, p. 264. Todas as imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 10 de outubro de 2017

Devotos da pá virada

A religiosidade estranha de muitos colonizadores do Brasil


Colonizadores do Brasil eram gente devota - ao menos na aparência, e segundo seus próprios critérios. Tinham uma religiosidade curiosa, toda própria, de provocar calafrios nos teólogos europeus que eram seus contemporâneos. Mas, em território colonial, o controle da Igreja estava, frequentemente, muito distante, de modo que cada um vivia como julgava conveniente. Sim, houve visitações do Santo Ofício, mas elas somente alcançaram povoações maiores, e em poucas ocasiões. Bem sabem os leitores que, contra João Ramalho e sua mais que numerosa descendência, de nada valiam as ameaças de recurso à Inquisição que lhes faziam os missionários jesuítas. Quem iria, falando sério, imaginar que inquisidores empreenderiam, no Século XVI, qualquer tentativa de vencer o literalmente escabroso Caminho do Mar para fazer uma aparição em São Paulo?
Catequizando indígenas, os jesuítas mantinham um olho nos turbulentos colonos. Este caso, que é um exemplo acabado do tipo de religiosidade que predominava em terras portuguesas na América, vem de um documento atribuído a José de Anchieta, e faz referência a um sujeito rico, que vivia em Santos:
"Por morte deixou parte de sua fazenda para nossa igreja, que ali então se edificava; parte à Misericórdia e a outra parte aos pobres. Houve, nesse homem, enquanto se não deu a Deus, soltura no vício da luxúria; mas por respeito de Nossa Senhora nunca quis pecar com mulher que tivesse o nome de Maria." (¹)
Casos mais cabeludos seriam vistos entre os paulistas que, indo ao sertão para aprisionar indígenas que pretendiam escravizar, ainda assim se imaginavam sob a proteção de Deus. Eram essas figuras que ocasionavam no jesuíta Antonio Ruiz de Montoya a maior revolta, porque, antes da partida rumo ao sertão, faziam devotamente todo um cerimonial religioso, como se estivessem envolvidos no mais sagrado dos empreendimentos:
"Quando saem a cativar homens livres, assim declarados pelos pontífices (com excomunhão prevista aos que lhes tiram a liberdade), a matar muitos deles, a capturar suas filhas e mulheres para seus torpes usos, a desterrar o Evangelho e o Santíssimo Sacramento de seus templos, se confessam e comungam como se fossem em romaria a Compostela." (²)
Acham que era só, leitores? Certamente não: quando atacavam as missões, matando, pilhando e escravizando, os integrantes das bandeiras de apresamento cuidavam em ter, consigo, ao menos um rosário, levando Montoya, em seu relato, a uma interessante conclusão:
"Determinaram-se os inimigos a queimar a igreja: confesso que os ouvi dizer que são cristãos, e mesmo nesta ocasião traziam rosários muito visíveis. Têm, sem dúvida, a fé de Deus, mas as obras são do diabo." (³)

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 470.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(3) Ibid. Os trechos citados da obra de Montoya foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Como os comandantes romanos marcavam o tempo

Vivemos amarrados à marcação do tempo - cada vez mais precisa e, em certo sentido, escravizante. Mas nem sempre foi assim. Milésimos de segundo? Há alguns séculos isso não faria o menor sentido. Que dizer, então, de relógios que tinham um único ponteiro, o das horas? Voltando no passado, chegaremos aos dias em que os relógios já não tinham ponteiros: conforme a cultura, podiam ser de areia, de água, de sol... E não exatamente portáteis.
Assim é que, na Antiga Roma, uma das funções de um comandante militar de respeito era saber determinar as horas com exatidão, para que os movimentos das forças sob sua autoridade fossem corretos. Os métodos aplicáveis, de acordo com Políbio de Megalópolis (¹), um grego que viveu entre os romanos, eram estes:
"É possível saber as horas do dia através da sombra (²), do movimento do sol ou pelos marcos existentes nos caminhos (³). Quanto às horas da noite, não há a mesma simplicidade, embora ainda assim seja possível, quando se examina o céu para saber a localização e movimento das constelações do Zodíaco." (⁴)
Os céus da Antiguidade deviam ser esplendorosos - nada de poluição de qualquer tipo para impedir a observação das estrelas, e, se bem que, vez ou outra, uma tempestade de areia (em algumas regiões) e/ou a nuvem resultante de alguma erupção vulcânica pudessem empanar o brilho dos corpos celestes, em uma noite clara haveria muito mais estrelas visíveis do que hoje, quando as luzes urbanas fazem concorrência desleal. Em tempos de paz, era possível admirar o céu com um olhar sonhador. Na guerra, perscrutar o movimento das estrelas talvez ajudasse a vencer o inimigo.

(1) c. 203 a.C. - 120 a.C.
(2) Como acontece em um típico relógio de sol.
(3) Presumindo-se o tempo geralmente gasto para que uma determinada distância fosse percorrida.
(4) O trecho citado da História de Políbio de Megalópolis foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 3 de outubro de 2017

Como indígenas tentavam evitar a aproximação de onças



Há alguns anos, uma pessoa idosa contou-me que, quando criança, ouvia o miado de onças, à noite, ao ir para casa em companhia do pai, em uma fazenda nos arredores de Campinas - SP. Isso aconteceu, se a informação for verdadeira, lá pelos anos vinte ou começo dos trinta do século passado. De qualquer modo, não deve ser coisa impossível. Afinal, nos últimos meses têm-se multiplicado as notícias da aparição de onças em áreas habitadas, perto, mesmo, de grandes centros urbanos. Alega-se que isso anda a ocorrer como consequência da destruição do habitat tanto da onça-pintada (Panthera onca) como da onça-parda (Puma concolor). Com dificuldade para encontrar alimento, alguns espécimes se aventuram junto às cidades.
As onças já foram responsáveis por amedrontar viajantes que ousavam pôr o pé no interior ainda pouco explorado do Brasil. Eram consideradas mais perigosas à noite, em razão de, por seus hábitos de caça, preferirem as horas escuras para um ataque às presas potenciais. Na década de 60 do Século XIX, quando viajar pela Província de Goiás significava, muitas vezes, ter de acampar à noite, Couto de Magalhães assim descreveu a aproximação de onças:
"À noite as onças, das quais tínhamos visto alguns estragos durante o dia, vieram urrar em torno de nosso acampamento, e uma delas tão perto que se distinguia o chiar de uma espécie de pigarro, cuja presença se nota quando urram a pequena distância; além, porém, da desagradável impressão que nos produziram, nenhum outro dano sofremos, à exceção do esparrame de nossos animais." (¹)
Emocionante, não é, leitores?!!!
É certo que o grupo liderado por Couto de Magalhães dispunha de boas armas de fogo, para o caso de alguma emergência. Indígenas dos tempos coloniais não tinham o mesmo recurso e, de acordo com Yves d'Évreux (²), acendiam fogueiras porque acreditavam que, assim, poderiam manter os poderosos felinos à distância:
"Têm [as onças] muito medo de fogo, a ponto de não se aproximarem dele, e por isso evitam-nas os índios acendendo fogueiras em suas casas, sempre abertas, quer de dia, quer de noite." (³)
Não me perguntem, leitores, até que ponto as fogueiras seriam eficazes - nunca fiz a experiência. É certo, porém, que indígenas tinham grande habilidade em lidar com o ambiente no qual viviam. Suas fogueiras eram úteis para aquecer moradias em lugares e estações frias, mantinham alguma iluminação durante a noite e serviam para afastar os incômodos mosquitos. Talvez ajudassem a manter, também, algum respeito por parte das onças.

(1) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Viagem ao Rio Araguaia. Goiás: Tipografia Provincial, 1864, pp. 212 e 213.
(2) Missionário capuchinho francês que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614.
(3) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 174.


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