terça-feira, 14 de novembro de 2017

A preferência por indígenas das missões para captura e escravização

Exceto em casos de "guerra justa" (¹), a escravidão de indígenas era ilegal no Brasil. Isto não quer dizer que não acontecesse. Exatamente ao contrário, foi amplamente utilizada e, em algumas áreas, predominante.
Para muitos colonizadores, os índios "favoritos" eram aqueles que, tendo vivido em missões, acabavam capturados por bandeiras de apresamento. A questão que consequentemente aparece é: por que essa preferência?
Antes de qualquer outra coisa, era comum que, vivendo em aldeamentos organizados por missionários (quase sempre jesuítas), os indígenas andassem desarmados e sem treino contínuo para o combate. Nesse sentido, estavam em desvantagem em relação àqueles que, habitando aldeias próprias, ao estilo típico dos ameríndios, apresentavam maior prontidão para a defesa. É verdade que os missionários insistiam com as autoridades coloniais (particularmente aquelas em áreas subordinadas ao governo espanhol), para que fosse admitido o uso de armas de fogo como defesa para os índios das missões, mas a permissão era negada sob o pretexto de que, uma vez armados, os índios poderiam ser uma ameaça para as povoações de colonizadores.
Outra razão para a preferência pela escravização de indígenas catequizados é que estes estavam já habituados ao convívio com colonizadores de origem europeia, tendo aprendido técnicas agrícolas com os missionários. Não seria preciso, portanto, gastar tempo ensinando a eles o trabalho que se esperava que fizessem. Sabemos, por relato do padre Antonio Ruiz de Montoya, jesuíta que trabalhou nas missões do Guayrá, que a principal atividade dos nativos catequizados era a agricultura: "[...] Os próprios padres lhes haviam ensinado a preparar a terra com arado [...]" (²). E mais: "Todos são lavradores e cada um tem seu próprio terreno de cultivo; atingindo os onze anos, os rapazes já trabalham em seu terreno, ajudando-se uns aos outros [...]." (³) Convenhamos, leitores, que esses indígenas em muito se avantajavam, até mesmo em relação aos colonizadores, já que, no Brasil, ainda no Século XIX havia resistência entre latifundiários quanto à introdução do uso do arado nas lavouras; a rusticidade era tal, que fazia recair a preferência no uso apenas de enxadas, manipuladas por escravos de origem africana.
Um terceiro aspecto deve ser tido como sumamente relevante, em se tratando do apresamento de indígenas catequizados: além do conhecimento de técnicas agrícolas, muitos deles eram qualificados no exercício de várias profissões. Montoya, o jesuíta já mencionado, afirmou: "São muito habilidosos nos ofícios mecânicos; há entre eles ótimos carpinteiros, ferreiros, alfaiates, tecelões e sapateiros, e ainda que antes nada disso soubessem, a atividade dos padres tornou-os mestres, e não pouco no cultivo facilitado da terra pelo uso do arado [...]." (⁴)
Longe de desconhecer esse fato, os sertanistas apresadores de indígenas viam nele um estímulo a mais, em particular quando queriam "peças" (⁵), não apenas para trabalho nas lavouras, mas também para venda.

(1) Um recurso hipócrita, mas conveniente, para acalmar consciências e legalizar o apresamento e escravização de ameríndios. Outro meio de dar um aspecto de legalidade à existência de indígenas escravizados era afirmar que haviam sido comprados em aldeias nas quais eram prisioneiros reservados à prática da antropofagia.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(3) Ibid. 
(4) Ibid.
(5) Modo como usualmente eram chamados os indígenas escravizados.


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2 comentários:

  1. Bem procuravam os Jesuítas "plantar" um mundo novo, parece que, em todas as épocas, há sempre valores mais altos que se levantam, por mais poderosos...

    Uma boa semana, Marta :)

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    1. Em mais de um sentido, havia choque de interesses entre os jesuítas, o poder monárquico e os colonizadores. Se no Século XVI a Companhia de Jesus parecia ter apoio irrestrito da monarquia para seus propósitos de catequese, o passar dos séculos trouxe outra maré, como se sabe. Em meio a esse turbilhão, os indígenas sempre levavam a pior...

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