terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Método usado por missionários jesuítas para acabar com uma guerra entre indígenas

Sabe aquela história de que "quando um não quer, dois não brigam"? Bem, nem sempre é verdade, mas os jesuítas que tentavam catequizar indígenas que viviam no interior da América do Sul descobriram que, não sendo possível impedir completamente que as guerras entre tribos rivais acontecessem, havia pelo menos um modo de evitar que os combates durassem muito tempo. Como?
A coisa era até simples. Os dois grupos de combatentes começavam a luta atirando flechas contra o lado oposto. Como muitas delas não atingiam ninguém, a prática corrente era recolher as flechas, que eram mandadas de volta. Desse modo, o confronto podia ir longe e, não raramente, tinha resultados devastadores.
Observando a dinâmica desse tipo de guerra, os missionários tiveram a ideia de recolher as flechas que vinham dos "inimigos", sem, contudo, mandá-las de volta. Esgotadas as flechas, só havia uma coisa a fazer: cair fora, até porque, agora, todas as flechas disponíveis estavam do outro lado, nas mãos dos padres. 
Esse procedimento era particularmente útil quando jesuítas percebiam que um grupo que catequizavam estava em vias de ser atacado justamente por ter recebido os missionários. Ao que parece, o expediente dava bom resultado apenas quando o combate era travado em pé de igualdade, ou seja, entre dois grupos de indígenas usando somente armas tradicionais, sem acesso a armas de fogo, trazidas por europeus.
Até aqui, leitores, vimos como é que o plano funcionava, teoricamente. Passaremos a tratar, agora, de uma situação real em que foi aplicado, desta vez em um confronto entre indígenas e espanhóis.
Aconteceu em terras do Paraguai, no Século XVII, quando o padre Antonio Ruiz de Montoya e outro missionário acompanhavam um grupo de espanhóis para a guerra contra indígenas que haviam rejeitado a catequese (!!!). Sendo muito numerosos, os indígenas levavam a melhor, enquanto espanhóis, religiosos e índios catequizados tentavam a defesa no interior de uma frágil paliçada. Foi nessa situação periclitante que Montoya sugeriu a aplicação do expediente de reter as flechas. Os espanhóis, porém, não concordaram com a ideia. Vamos à narrativa de Montoya:
Flechas confeccionadas
por indígenas (³)
"Tratamos, meu companheiro e eu, de pôr fim a essa guerra, ordenando a nossos índios amigos que não atirassem flechas, limitando-se a recolher as do inimigo, que, ao se ver desarmado, deixaria livre a passagem para que voltássemos, uma vez que os espanhóis já não tinham outra pretensão. Demos parte a eles de nosso intento que, mal considerando, rejeitaram, alegando que, ao atirarmos nossas flechas, impedíamos que os inimigos se aproximassem do forte, raciocínio sem fundamento, porque isso eles [espanhóis] eram capazes de fazer melhor com suas escopetas." (¹)
Mas, a despeito da oposição, o perseverante jesuíta não estava disposto a ceder. Tendo reunido os indígenas que tinha de sua parte, recomendou expressamente que não atirassem mais nenhuma flecha para fora da paliçada:
"Travou-se logo uma batalha renhida; os espanhóis lutavam pela vida [...], e nós retiramos os índios para a praça de armas, que os inimigos cobriram imediatamente de flechas que se cravaram no solo, as quais os nossos foram recolhendo. Fizeram o mesmo segunda e terceira vez, e sem que os nossos atirassem uma só flecha, cessaram as flautas, os tambores e a gritaria do inimigo, confuso por se ver desarmado. Os espanhóis, estranhando esse acontecimento, ignoravam a causa, até que sabendo o motivo e vendo que os inimigos, em massa, se despediam para voltar às suas terras, demos graças ao Autor de tudo." (²)
Só há uma conclusão possível, leitores: o método funcionava!

(1) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(2) Ibid.
As citações de Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) São da etnia kayapó e pertencem ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF). Na atualidade, flechas como essas têm uso relacionado à caça e à pesca.


Veja também:

4 comentários:

  1. Observar, analisar, entender... Os Jesuítas sabiam o que faziam, ó se sabiam!

    Uma boa semana, Marta :)

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    1. Foram mestres da adaptação às circunstâncias (que eram, inclusive, bastante difíceis).

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  2. Bom dia, Marta.

    Sempre leio esse blog incrível quando estou à procura de dados históricos, e nunca me decepciono. Tenho pesquisado sobre os indígenas para um projeto no qual estou trabalhando, talvez você pudesse me ajudar com um dado que ainda não pude encontrar com clareza.

    Quais tribos exatamente populavam a região de Vila Rica no início do século XIX?
    Apenas encontrei informações genéricas à esse respeito.

    Desde já agradeço!
    Raphael.

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  3. Olá, Raphael, obrigada por visitar o blog História & Outras Histórias.

    É compreensível que você esteja encontrando dificuldade para obter essa informação porque os povos indígenas do Brasil eram, como regra, nômades ou seminômades. Portanto, um grupo que vivia na região do Itacolomi em uma época, podia migrar para outra, enquanto outro grupo vinha viver, temporariamente, por ali, ou seja, as tribos não eram fixas.

    Entretanto, o termo "Itacolomi", que assinalava a região do Ouro Preto (Vila Rica) para os bandeirantes, é de origem tupi. Pode ser uma pista, mas, ainda assim, há um problema: o tupi era falado por quase todos os bandeirantes paulistas, muitos deles mamelucos, e, talvez o "menino de pedra" da montanha seja denominação dada por eles e/ou pelos indígenas que os acompanhavam, e não pela população indígena que perambulava habitualmente na área.

    Muitos indígenas que viviam no interior do Brasil pertenciam ao tronco Jê (portanto, não eram tupis). Há uma obra escrita no Século XIX por José Vieira Couto (Memória Sobre as Minas da Capitania de Minas Gerais) que faz várias referências aos indígenas da região, quase todas de caráter depreciativo (infelizmente, era comum na época), mas tudo genericamente.
    Vi um site com algumas informações interessantes, talvez seja bom você dar uma olhada: http://www.descubraminas.com.br/MinasGerais/Pagina.aspx?cod_pgi=1814.

    Por agora, é isso. Se eu encontrar alguma informação mais precisa, volto a escrever aqui ok?

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