quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Humanos muito estranhos que antigos diziam ter visto

Navegadores europeus dos Séculos XV e XVI que foram à África, Ásia ou ao Continente Americano relataram, às vezes com alguma decepção, que não haviam encontrado "gente estranha" nas terras percorridas. Referiam-se a criaturas disformes, ainda que dotadas de alguma semelhança com a espécie humana "normal". Não se preocupem, leitores, se a ideia não está muito clara. Logo adiante vocês entenderão melhor o que isto significa.
De onde viria, no entanto, a expectativa quanto ao encontro dessas variantes da humanidade? Plínio, o Velho, nos Livros V a VII de Naturalis Historia cita uma infinidade de supostos humanos, supostamente vistos por viajantes que, também supostamente, teriam andado por terras longínquas e que, mais tarde, deslumbrando seus contemporâneos, haviam escrito alguma coisa a fim de registrar para a posteridade suas tão notáveis descobertas. O ilustre panteão incluía:
  • Seres sem cabeça, cuja boca e olhos estavam no peito, e que habitariam um lugar na África;
  • Gente sem língua, nariz, etc., também vivendo no interior do Continente Africano;
  • Homens com pés ao contrário, mas, ainda assim, extremamente velozes;
  • Um povo que teria duas pupilas em cada olho (¹);
  • Gente que, durante a juventude, tinha os cabelos brancos, que enegreciam com o envelhecimento (²);
  • Um povo (na Índia) que não tinha nem dor de cabeça, nem dor de dente (³);
  • Também na Índia, um povo que se nutria apenas dos aromas que aspirava;
  • Homens com uma só perna e que, portanto, se moviam aos saltos;
  • Homens que teriam uma longa cauda coberta de pelos (⁴);
  • Finalmente, segundo a lista de Plínio, "nos desertos da África, espécies de homens aparecem aos viajantes e se esvaem em seguida" (⁵).
Que lhes parece, leitores: basta?
Na Antiguidade greco-romana, pouca gente tinha a oportunidade de viajar, especialmente quando se tratava de percorrer regiões algo distantes do Mediterrâneo. Portanto, se alguém alegava ter visto alguma monstruosidade, talvez os leitores e/ou ouvintes até duvidassem de sua palavra, mas era pouco provável que alguém fosse verificar. Viajantes podiam simplesmente mentir à vontade, e sempre haveria alguém para acreditar em sua conversa fiada. Plínio teceu, ele mesmo, uma interessante explicação para esse oceano de tolices: "Pessoas de alta posição, não dadas a investigações acuradas, mas constrangidas de manifestarem ignorância, não vacilam em mentir, uma vez que os maiores erros não parecem falsos quando vêm de um autor preeminente." (⁶)
Mas, se quisermos ser justos, teremos de admitir que nem sempre um contador de histórias estava mentindo. O medo em face do desconhecido às vezes suplanta a racionalidade e leva a crer nas maiores aberrações. E há, ainda, os erros de interpretação. Um indivíduo que viajou por terras distantes trouxe, ao retornar, a pele de dois seres que abatera e que ele acreditava pertencerem a uma raça de homens: eram baixinhos, cobertos de pelos longos e escuros, viviam em árvores e emitiam sons roucos em lugar da fala. Primatas? Sim, provavelmente, mas não humanos. Vocês, leitores, já sabem do que se tratava, não?

(1) Isso faz lembrar um pouco as representações de ETs que aparecem na literatura e no cinema.
(2) Qual seria a vantagem?
(3) Começa a ficar interessante...
(4) Não poderia faltar.
(5) A provável explicação deve ter escapado a Plínio.
(6) Naturalis Historia, Livro V. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


Veja também:

4 comentários:

  1. As próprias forças naturais assumiam proporções e fisionomias monstruosas, na mente dos antigos. Daí o Adamastor e outros monstrengos narrados n'Os Lusíadas, epopeia maior da aventura dos descobrimentos. O medo e o desconhecido tem dessas coisas.
    Beijinhos, um bom domingo
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Sim, o medo, a imaginação, e, como você lembrou, a influência da mitologia (que, para os antigos, não tinha o mesmo significado que tem para nós, e era tomada como a mais autêntica realidade).

      Tenha uma ótima semana!

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  2. O desconhecido cria asas na imaginação. Basta ler livros ou ver filmes de ficção científica. :)

    Uma boa semana, Marta :)

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