quinta-feira, 22 de março de 2018

Ulrich Schmidel e os animais da América do Sul

A difícil tarefa de descrever criaturas desconhecidas para leitores do Século XVI


Ulrich Schmidel, o mercenário alemão que veio à América do Sul no Século XVI na armada de Pedro de Mendoza (fundador de Buenos Aires), escreveu um livrinho (¹), depois de retornar à Alemanha vinte anos mais tarde, em que narrou com estilo simples, talvez até rude, as peripécias vividas no Novo Mundo. Entre uma aventura e outra, incluiu algumas referências a seres vivos que seus conterrâneos ainda desconheciam. Para dar a vocês, leitores, uma ideia da curiosa capacidade descritiva de Schmidel, selecionei três exemplos, sendo dois deles de mamíferos e o terceiro e último, de um réptil.

1. Guanaco


Tratando de indígenas do sul do Continente, Schmidel informou que tinham "ovelhas tão grandes como uma mula" (²). De que, exatamente, falava? Do guanaco, na certa, porque, ainda que tenha encontrado outros camelídeos da América do Sul nas expedições de que participou, só este poderia ser enquadrado na descrição e no lugar em que, naquele momento, estava o nosso conciso escritor.


Guanaco

2. Anta


Anta ou tapir
De acordo com Schmidel, a anta "é um animal parecido com um burro, tendo pés como os de uma vaca e o couro muito espesso [...]." (³) A referência ao couro de anta não é fruto do acaso: colonizadores, tanto da América Espanhola quanto do Brasil, aprenderam com indígenas que ele podia ser usado para a fabricação de equipamentos de defesa - couraças, por exemplo - que apresentavam notável resistência às armas em uso na época.

3. Jacaré


"Achkeres", disse Schmidel, "é um peixe [sic] de couro muito duro, que não pode ser perfurado com arma [branca] nem com flechas indígenas; é um peixe [sic] grande, e causa aos outros peixes muito dano. Põe os ovos na terra, a uma distância de dois ou três passos da água [...]. Nesse peixe [sic] o melhor é a cauda, mas o restante não é ruim; vive o tempo todo na água." (⁴)
Ulrich Schmidel estava longe de ser um cientista, e não seria razoável esperar dele um rigor técnico que nem mesmo alguns sábios do Renascimento foram capazes de ostentar. Sua preocupação com os animais era essencialmente utilitária, e suponho que, se alguém lhe houvesse solicitado que classificasse os animais nativos da América que conhecera, muito provavelmente iria dividi-los em bons e maus para a panela... Não era gula. Centenas de homens que vieram com Pedro de Mendoza para lugares que hoje conhecemos como Argentina e Paraguai morreram de fome ou de doenças decorrentes de severa desnutrição. A miséria extrema acabou resultando em cenas macabras, mas isto já é assunto para outra postagem.


Jacaré

(1) A primeira edição de Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart foi publicada na Alemanha em 1567; para esta postagem foi consultada a edição de 1599.
(2) SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599, p. 17.
(3) Ibid., p. 30.
(4) Ibid., p. 49. Todos os trechos citados de Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.

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