quinta-feira, 3 de maio de 2018

Uma história de arrepiar os cabelos: prática de canibalismo por colonizadores da América do Sul

Seria possível que os autodenominados "conquistadores da América", na ânsia pela sobrevivência e enriquecimento rápido, abandonassem completamente as regras de conduta que haviam aprendido em sua terra de origem? Não poucos episódios sugerem uma resposta afirmativa. Hoje veremos um deles.
Colonizadores que vinham ao Continente Americano no Século XVI precisavam enfrentar um problema terrível: não havia, assim que desembarcavam, nenhum hotel de classe turística à espera deles, nem algum lauto banquete que recompensasse a dificultosa travessia do Atlântico. Era preciso estabelecer um acampamento, pelo menos até que casas, mesmo simples, fossem construídas. E, necessidade imediata, era indispensável encontrar alguma coisa que servisse como alimento. Com sorte, haveria caça e pesca à disposição, e, para quem soubesse cultivar a amizade dos ameríndios, talvez a possibilidade de conseguir vegetais por meio de escambo. Mas, em regiões inóspitas, nada disso poderia ser obtido, e mesmo a pilhagem de suprimentos em poder dos indígenas não resolveria a maior das dificuldades: a fome.
Retrato de Ulrich Schmidel, de acordo com
a edição de 1599 de Warhaftige Historien
einer wunderbaren Schiffart
Foi, meus leitores, exatamente essa a situação defrontada pela expedição que partiu da Espanha em 1534, com destino à América do Sul, sob o comando de Pedro de Mendoza, a quem se deve a fundação de Buenos Aires (¹). Em extrema penúria, os "conquistadores" perderam toda a referência quanto ao que seria ou não adequado para alimentação - é o que se conclui do depoimento de Ulrich Schmidel, um soldado alemão que também viera na esquadra de Pedro de Mendoza, e que, depois de vinte anos no Continente Americano, retornou à Alemanha e escreveu um livro (²), no qual registrou:
"Era tão grande a pobreza e fome que não ficaram ratos, ratazanas, cobras e outros bichos que não fossem comidos, e até os sapatos e objetos de couro foram consumidos. Aconteceu que três espanhóis sorrateiramente roubaram e comeram um cavalo; foram descobertos, aprisionados e, sob tortura, confessaram o que haviam feito; condenados a enforcamento, foram executados. Na mesma noite, outros três espanhóis foram até as forcas, cortaram as coxas e outras partes do corpo dos enforcados e levaram-nas ao alojamento com a intenção de comê-las, tal era a fome. Assim também um espanhol, para saciar a fome, devorou seu irmão que havia morrido na cidade de Buenos Aires." (³) 
Quem lê uma coisa dessas fica logo pensando que Schmidel devia estar mentindo ou, no melhor dos casos, exagerando. No entanto, vários contemporâneos seus deixaram relatos semelhantes. É o caso, por exemplo, do que se encontra em uma carta datada de 1556, cujo autor, Francisco de Villalta, expôs os mesmos fatos, apenas com a diferença de que os enforcados e canibalizados seriam dois, e não três, como disse Schmidel. Portanto, ao que parece, essa história de arrepiar os cabelos aconteceu mesmo.

(1) Neste caso, a primeira fundação; há alguma controvérsia quanto à data.
(2) A primeira edição alemã data de 1567.
(3) SCHMIDEL, Ulrich. Warhaftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599, pp. 10 e 11. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.

4 comentários:

  1. Não gostamos de comentar, mas a vida, nos limites, é capaz de nos levar a situações extremas. Não é preciso recuar muito no tempo, basta recordarmo-nos do episódio, na segunda metade do século XX, em que uma equipa uruguaia de râguebi teve um acidente de aviação - creio que nos Andes - e que, por uma questão de sobrevivência, chegou a praticar a antropofagia.
    Parece, cara Marta, que "a ocasião faz o ladrão".
    Muito há a dizer da essência humana, não acha? Tanto para o melhor, como para o pior.

    Abraço :)

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    1. Há vários casos documentados. Lembra-se daquele ocorrido nos Estados Unidos no Século XIX, com um grupo que se dirigia para o Oeste e, alcançado pelo inverno sem chegar à Califórnia, enfrentou os horrores da fome e do frio?
      Portanto, os colonizadores do Século XVI não foram, nesse sentido, caso isolado. Em situações-limite, a humanidade é capaz de coisas quase inacreditáveis.

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  2. Por muito que nos cause repulsa, pensando friamente, o que difere comer carne de um animal de comer carne humana? Ambas providenciam a proteína necessária à sobrevivência. Porque nos repugna que em algumas regiões da China se coma cão, porque é o melhor amigo do homem, e depois comemos lindos bezerros? Pior, separamos as crias logo à nascença das progenitoras para bebermos o leite que devia ser do pequeno bezerro!! No que toca à alimentação, muitas outras coisas nos deviam arrepiar os cabelos.
    Abraço

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    1. Sou vegetariana (acho que todos os leitores deste blog sabem disso rsrsrsss). Sim, por uma questão de saúde; SIM, também pela vida dos animais.
      No que toca ao assunto desta postagem, a repulsa que sentimos pela ideia de comer carne humana é, sem dúvida, muito útil: no mínimo, tem, ao longo dos séculos, evitado a propagação de muitas doenças. Para que esse tabu fosse rompido, os colonizadores deviam estar nos extremos da fome. Parece que foi exatamente o caso.

      Um abraço. Tenha uma ótima semana!

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