quarta-feira, 18 de maio de 2016

Trabalho compulsório na América Espanhola: a Encomienda

Encomiendas, encomenderos, encomendados


A encomienda foi um tipo de trabalho compulsório adotado por colonizadores na chamada América Espanhola. Em poucas palavras, funcionava assim: um espanhol (o encomendero) recebia certo número de índios (os encomendados), de quem poderia exigir trabalho sem qualquer remuneração, ficando, no entanto, obrigado a cuidar de sua catequese. Hoje chega a parecer ridículo, ainda que não tenha graça nenhuma.
Sem entrar no assunto da catequese forçada de indígenas, será útil recordar que, como regra, encomenderos não tinham a menor preocupação quanto a doutrinar a população nativa. Estavam somente interessados em extorquir trabalho.
Se dermos crédito ao que escreveu no Século XVI o frade dominicano Bartolomé de Las Casas (e temos boas razões para acreditar nele), os conquistadores achavam que a população nativa do Continente Americano era demasiado numerosa e, portanto, seria difícil dominá-la. Assim, faziam guerra para matar os homens adultos - ou guerreiros - e depois capturavam os sobreviventes para trabalho compulsório. Disse Bartolomé de Las Casas:
"Geralmente nas guerras não deixam vivos a não ser os jovens e as mulheres, oprimindo-os com a mais dura, horrível e áspera servidão, em que jamais nem homens e nem animais foram postos." (¹) 
O mesmo Las Casas deu mais detalhes quanto ao trabalho a que eram submetidos os encomendados, mostrando também que a catequese era apenas um pretexto, e que quase ninguém, dentre os conquistadores, estava muito preocupado com ela:
"Depois de acabadas as guerras e mortos nelas todos os homens, ficando só os jovens, as mulheres e as crianças, repartiam-nos entre si, dando a um trinta, a outro quarenta, a outro cem ou duzentos, segundo a graça que cada um alcançava com o tirano maior que diziam governador; e assim repartidos a cada cristão [sic] eram dados com o pretexto de que fossem ensinados nas coisas da fé católica, sendo comumente todos eles [os conquistadores] idiotas e homens cruéis, avarentos, cheios de vícios, que se faziam curas de almas.
A cura ou cuidado que deles tiveram foi enviar os homens às minas para cavar ouro, que é trabalho intolerável, e as mulheres punham nas fazendas, que são granjas, para trabalhar na lavoura e cultivar a terra, um trabalho que é para homens muito fortes e resistentes. A ninguém davam de comer, senão ervas e coisas que não nutriam, de modo que às mulheres que amamentavam secava-se o leite e assim morreram em breve todas os bebês." (²)
É evidente que com tal tratamento os indígenas não podiam sobreviver por muito tempo. No entanto, a despeito da brutalidade do sistema de captura e trabalho, as encomiendas, estabelecidas desde o princípio da colonização, ainda estavam em uso em 1542, quando Las Casas escreveu a sua Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias (³), levando-o a escrever, então:
"Encomendam aos diabos [sic], a uns duzentos e a outros trezentos índios. O diabo encomendero chama os índios diante de si, e eles logo vêm como se fossem cordeiros; tendo vindo, faz cortar as cabeças de trinta ou quarenta dentre eles [sic!], e diz aos outros: farei o mesmo a vocês, se não me servirem bem ou se forem embora sem minha permissão." (⁴)

Houve no Brasil alguma coisa semelhante à Encomienda?


Um aspecto importante a ser considerado é que, em boa parte do Continente Americano sob colonização espanhola, a população nativa era bastante numerosa, com vários casos de sociedades urbanas e organização política sofisticada. Isso explica algumas diferenças em relação à colonização do Brasil, onde a população indígena era muito menor, com hábitos nômades ou seminômades e vivia espalhada por um vasto território coberto, quase todo ele, por densas florestas (⁵). É verdade que também no Brasil houve confrontos sangrentos entre indígenas e colonizadores portugueses, mas as proporções foram menores, devido às diferenças mencionadas.
Apesar disso, havia no Brasil os "índios administrados", que eram postos, até certo ponto, sob um regime semelhante à encomienda. Ou seja, havia, legalmente, a obrigação da catequese, estando o administrador autorizado a exigir trabalho. No entanto, é fato que, no Brasil, às vezes o relacionamento entre ameríndios e colonizadores foi, sob algumas circunstâncias, até amistoso. Na pequena São Paulo de Piratininga dos Séculos XVI a XVIII uma parte considerável da população era composta por mamelucos, filhos de portugueses e índias. E, diga-se de passagem, os mamelucos tinham muito orgulho de suas origens. 
Isso, porém, não invalida o fato de que não eram raras as chamadas "guerras justas" contra tribos nativas que se mostravam hostis à presença de colonizadores; ao lado das doenças trazidas pelos europeus, essas guerras foram decisivas para a gradual redução da população indígena, levando, inclusive, à completa desaparição de diversos povos.

(1) LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias. Philadelphia: Juan F. Hurtel, 1821, p. 18.
(2) LAS CASAS, Bartolomé de. Op. cit., pp. 30 e 31.
(3) Escrita em 1542, impressa pela primeira vez dez anos mais tarde. Os trechos citados nesta postagem são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) LAS CASAS, Bartolomé de. Op. cit., p. 144.
(5) Sobre o relacionamento de grupos indígenas do Brasil com as civilizações andinas há um campo enorme para investigação. Ainda se sabe muito pouco a respeito.


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