terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Modo indígena de discutir algum assunto importante

Para quem acha que o melhor modo de deliberar sobre algum assunto importante é fazer com que todos os interessados sejam postos ao redor de uma mesa para um debate franco, o modo indígena de discutir coisas relevantes pode parecer estranho. Continha, porém, um princípio valioso: o respeito àquele que falava, para que pudesse expressar seu ponto de vista integral e claramente.
Tupinambás, além de outros grupos, tinham por costume jamais interromper alguém que falava - ouviam em estrito silêncio, pelo tempo que fosse necessário, segundo relato de Jean de Léry, francês que esteve no Brasil no Século XVI. Informação semelhante nos vem de Gabriel Soares, um colonizador e senhor de engenho, que também viveu no Brasil no Século XVI, mas na Bahia, e não no Rio de Janeiro, como Léry:
"Se assentam todos de cócoras, e como tudo está quieto, propõe o principal (¹) sua prática, a que todos estão muito atentos; e como acaba sua oração, respondem os mais antigos cada um por si, e quando um fala, calam-se todos os outros, até que vem a concluir no que hão de fazer [...]." (²)

Reunião em uma aldeia de índios coroados (³)

Quanto poderia durar a deliberação? Ora, dependia do assunto, mas, segundo Léry (⁴), às vezes uma reunião tribal passava de seis horas. O detalhe pitoresco é que cada orador, ao invés de simplesmente falar, fazia uso, também, de um amplo gestual, batendo compassadamente os pés no chão ou as mãos no próprio corpo Valia, ainda, alterar, intencionalmente, a intensidade da voz. Estratégias de convencimento, é claro, próprias das culturas em questão, que não passaram despercebidas aos missionários que queriam catequizar indígenas. Mediante observação, os padres logo aprenderam que o ensino da doutrina e das histórias bíblicas seria mais atraente se apresentado no estilo que era familiar a seus ouvintes. E, se o método funcionava, os missionários (particularmente os jesuítas), não vacilavam em adotá-lo.

(1) Líder da aldeia indígena ou cacique.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 326.
(3) SPIX, Johann B. von et MARTIUS, Carl F. P. von. Atlas zur Reise in Brasilien. A imagem foi editada para facilitar a visualização nestes blog.
(4) LÉRY, Jean de. Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil. Genève: Antoine Chuppin, 1580.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Métodos de tortura usados contra cristãos no Império Romano

"A um malfeitor qualquer", escreveu Tertuliano em sua Apologia, "torturam para que confesse seu crime, mas os cristãos são torturados para que neguem sua fé" (¹). 
Era o ano 200 d.C.; Sétimo Severo ocupava o posto de imperador em Roma e a perseguição aos cristãos era feroz. Mas que torturas, afinal, eram essas a que se referiu Tertuliano?
Ele próprio fez uma lista, que incluía estes itens:
  • Eram pregados em cruzes e paus;
  • Tinham as costas destroçadas com unhas de ferro;
  • Eram decapitados (²);
  • Eram queimados vivos;
  • Eram condenados a trabalhos forçados nas minas;
  • Sofriam condenação ao desterro em ilhas.
Ninguém imagine que Tertuliano estava exagerando, porque, se fosse esse o caso, o argumento de que se servia para demonstrar que as perseguições eram injustas teria pouco ou nenhum peso. Presume-se que essa coleção de horrores não foi inventada simplesmente para destroçar cristãos. Já existia e, de hábito, era empregada quando a intenção era arrancar (ou fabricar) confissões daqueles a quem se imputavam delitos ou quando o objetivo era punir criminosos comuns. 
Para quem achou tudo isso demasiado absurdo, lembro que a humanidade já viveu tempos brutais. É duvidoso, entretanto, que, desde então, tenha melhorado bastante - os leitores que estão familiarizados com a História, remota ou recente, sabem muito bem o que quero dizer.

(1) O trecho citado da Apologia de Tertuliano foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Decapitar é cortar a cabeça. Não era, portanto, apenas um método de tortura, mas a execução de uma sentença de morte, o que também ocorria quando cristãos eram queimados vivos.



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terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Atividade industrial no Brasil por volta de 1870

O panorama das atividades econômicas no Brasil era, por volta de 1870, de predomínio absoluto da agricultura. Esta, por sua vez, dividia-se em monocultura de exportação (com ênfase na produção de café), e policultura para consumo local. Grandes cafeicultores, empenhados em controlar a política econômica do Império, detinham as melhores terras e tratavam de obter todo o favorecimento para os seus interesses. Assim, a produção de alimentos para a população acabava em segundo plano, e, em consequência da falta de estradas e meios convenientes de transporte, nem sempre chegava aos consumidores. Resultado: notava-se a escassez de alimentos frescos até mesmo no Rio de Janeiro.
À vista do que foi dito, os leitores já podem imaginar as dificuldades impostas a quem se aventurava em alguma atividade industrial. Políticos insistiam na "vocação agrícola" do Brasil (¹), e essa ideia era repetida, sem muita reflexão, como se fosse verdade incontestável. Parecendo concordar, mas já discordando, o Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871 dizia:
"Suposto essencialmente agrícola, o Brasil já começa a entrar no período industrial que por toda a parte sucede à formação dos grandes núcleos de população, de hábitos e costumes avessos aos pesados trabalhos rurais [sic]. (²)
[...]. Convém animar, por meios indiretos (³), esse pendor, preparando-se elementos para a vida industrial, não menos útil e proveitosa que a vida agrícola." (⁴)
A mesma fonte listava, em seguida, os artigos em que a produção industrial da época obtinha algum sucesso:
"A grande indústria manufatureira, limitada na atualidade à fabricação de panos grossos de algodão, tem prosperado em algumas províncias, em cujos mercados sustentam seus produtos, embora de preço mais elevado, vantajosa concorrência com os similares, importados da Europa e dos Estados Unidos.
As fábricas de tecidos estabelecidas nas províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Alagoas e outras ainda não fornecem quanto há mister o consumo nacional. [...].
A fabricação de cerveja, tabaco ou rapé, de chapéus, calçados e outros objetos vai também tomando incremento proporcionalmente grande [...]." (⁵)
Não deixa de ser intrigante que fosse possível aos fabricantes de algodão uma "vantajosa concorrência com os similares", admitindo que os preços praticados eram mais altos que os dos tecidos importados, e a produção, insuficiente. Mas, sendo certo que país nenhum se abastece apenas de tecidos rústicos de algodão, cerveja, tabaco, chapéus, calçados e uns poucos artigos não listados pelo Almanaque (sabão e móveis simples, por exemplo), os leitores não terão dificuldade em deduzir que, para suprimento de tudo o mais, recorria-se à importação. Então, se as exportações eram essencialmente de origem agrícola e extrativista, importando-se produtos industrializados, não será preciso algum esforço mental hercúleo para perceber o quanto a balança comercial do Império era prejudicada. Unindo-se a vários outros fatores, as questões econômicas tiveram seu papel no encaminhamento da substituição do governo monárquico pelo republicano em novembro de 1889.

(1) Há quem argumente nesse sentido até hoje. 
(2) A industrialização do Brasil ocorreu, mas por razões muito diferentes dessa. Levem em consideração, leitores, que, em 1871, o grande debate estava relacionado ao fim da escravidão, levantando a pergunta: Quem irá trabalhar na lavoura em lugar dos escravos?
(3) "Meios indiretos" - quais seriam?
(4) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871/ Suplemento. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871, p. 60.
(5) Ibid.


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quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Campos de batalha

"Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado de sangue: já sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de setas, o estrondo de máquinas de guerra. Claros sinais de que aí viveram homens; por que é com estas balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra."
Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas 

Frequentemente associados a heroísmo, patriotismo, coragem, os campos de batalha já foram exaltados em obras de arte - principalmente em pinturas - mas também em música, dos mais diversos gêneros, e na literatura. Essas expressões são, quase sempre, resultado da visão dos vencedores. Afinal, uma obra de arte para valorizar a derrota seria pouco provável. 
Os assírios demonstraram uma enorme competência em retratar cenas de guerra em relevos que, graças a escavações arqueológicas, são hoje perfeitamente conhecidos. É o caso do exemplo que se vê abaixo (¹):

Exército assírio perseguindo inimigos

Vencedores, vencidos, prisioneiros, gente decapitada, empalada... A realidade nua e crua, recheada do sadismo dos conquistadores. Mas, um dia, os assírios também foram derrotados. Uma coligação de caldeus, medos e, provavelmente, outros povos mais, arrasou Nínive, a orgulhosa capital assíria, em 612 a.C. - pode-se bem imaginar como foi a vingança.
Outro cenário de guerra notável da Antiguidade foi o de Zama, no norte da África, onde, no ano 202 a.C., romanos e cartagineses se enfrentaram. Os romanos venceram. Políbio de Megalópolis (²) deixou-nos uma descrição do campo de batalha:
"O campo entre os exércitos ficou coberto de sangue, mortos e feridos, trazendo a Cipião um grande problema, uma vez que os feridos que se revolviam no próprio sangue e a confusão de armamento e de cadáveres dispersos tornavam a passagem quase intransponível às tropas que, em formação, aguardavam sua vez de entrar em combate." (³)
Panorama digno de um filme de terror? Na Antiguidade ou nos tempos medievais, um campo de batalha não era, como regra, muito diferente disso. Mas vamos mudar de cenário, no tempo e no espaço. Passemos ao Brasil Colonial.
De acordo com Pero de Magalhães Gândavo (⁴), em seu Tratado da Terra do Brasil, um campo de batalha entre indígenas tinha este aspecto:
"As armas com que pelejam são arcos e flechas [...], e assim parece coisa estranha ver dois, três mil homens (⁵) nus duma parte e doutra com grandes assobios e grita flechando uns aos outros; e enquanto dura esta peleja nunca estão com os corpos quedos, meneando-se de uma parte para outra com muita ligeireza, para que não possam apontar nem fazer tiro em pessoa certa; algumas velhas costumam apanhar-lhes as flechas pelo chão e servi-los enquanto pelejam."

Combate entre indígenas (⁶)

Durante o Império, a guerra mais importante foi, como se sabe, aquela que no Brasil é chamada a "Guerra do Paraguai". Do confronto conhecido como Batalha do Riachuelo há uma descrição feita pelo combatente Antônio Luís von Hoonholtz, Barão de Tefé:
"Que espetáculo desolador!
Por toda a parte o rio estava coalhado de destroços e de gente que aparecia e desaparecia acarreada pela violência da correnteza." (⁷)
Termino, já nos dias da República, com esta descrição, obra de Euclides da Cunha (⁸) em Os Sertões, do local do último confronto em Canudos, uma guerra civil que monopolizou as atenções em 1897:
"Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o "hospital de sangue" dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército."
Não esperem, leitores, que eu defenda aqui um pacifismo ingênuo e unilateral. Guerras, às vezes, são mesmo inevitáveis. Mas não há dúvida de que o mundo passaria melhor sem elas. Enquanto isso não acontece, novas e mais eficientes armas de destruição em massa são desenvolvidas, a indústria bélica triunfa e move parte considerável da economia mundial, e vidas humanas - ora, quem se importa com elas? - vidas humanas fenecem, sob o pressuposto do serviço à pátria, e até em nome da religião. A cada nova guerra, este planeta fica um pouco pior, ambiental e moralmente. Um completo exercício de racionalidade e inteligência às avessas. 

(1) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) c. 203 a.C. - 120 a.C.
(3) O trecho citado da História de Políbio foi traduzido por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) c. 1540 - 1580.
(5) É possível que Gândavo tenha exagerado no número, ainda que batalhas com exércitos indígenas tão numerosos não possam ser descartadas, supondo várias aldeias coligadas.
(6)THEVET, André. Les Singularitez de la France Antarctique. Paris: Maurice de La Porte, 1558. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(7) HOONHOLTZ, Antônio Luís von (Barão de Tefé). A Batalha Naval do Riachuelo. Rio de Janeiro: Garnier, 1865, p. 45.
(8) 1866 - 1909.


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terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Um chefe indígena que ensinava aos jovens a importância do trabalho

Liçãozinha de moral, leitores!... Podem rir, mas continuem a ler.
A coisa foi contada pelo padre Yves d'Évreux, líder do primeiro grupo de capuchinhos que veio ao Maranhão no começo do Século XVII (¹). Indo, certo dia, fazer uma visita a um chefe indígena já bastante idoso, encontrou-o ocupado em trabalhar com um tear de fazer redes. Ora, esse era, tradicionalmente, um trabalho que, entre indígenas, se reservava às mulheres. Perplexo, o religioso francês não hesitou em interrogar o experiente guerreiro quanto à razão que o levava a essa atividade - naturalmente, d'Évreux precisou da assistência de um intérprete. A resposta não se fez esperar:
"Os rapazes observam minhas ações e praticam o que eu faço: se eu ficasse deitado na rede e a fumar, eles não quereriam fazer outra coisa; quando me veem ir para o campo com o machado no ombro e a foice na mão (²), ou tecer rede, eles se envergonham de nada fazer." (³)
Vejam, leitores, que esse chefe indígena, reputado como um "selvagem" pelos colonizadores, sabia muito bem o que era liderar. Haveria algo mais forte que o exemplo? O padre d'Évreux concluiu sua narrativa do incidente com uma observação nada lisonjeira para os franceses de seu tempo:
"Eu e os que comigo então se achavam, sentimos muito prazer ouvindo estas palavras, e desejaria vê-las praticadas por todos os cristãos, porque então a ociosidade, mãe de todos os vícios, não estaria em França, como atualmente se vê." (⁴)

Tecido de tear indígena (⁵)

(1) Yves d'Évreux esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, durante a tentativa de estabelecimento de uma colônia francesa naquela área.
(2) Ferramentas provenientes do escambo com franceses.
(3) D'ÉVREUX, Ivo. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 62.
(4) Ibid.
(5) Da etnia Kaxináwa, Acre. Pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF).


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quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Quanto o Nilo precisava transbordar para que as colheitas fossem boas

Vocês sabem, leitores, que, graças às enchentes periódicas do Nilo, o Egito foi, na Antiguidade, o mais destacado celeiro do mundo mediterrânico. Mas não pensem que, ano após ano, as cheias eram rigorosamente iguais. Nada disso. E, porque não eram, a época em que as águas deveriam começar a subir era cercada de grande expectativa. Não era para menos: suprema fartura e miséria estavam entre os resultados possíveis de um transbordamento mais ou menos generoso. Era feita uma medida exata do nível do rio, enquanto as águas, ao se espalharem pelas margens, arrastavam consigo o precioso húmus que fertilizava o solo. Isto, de acordo com Plínio (¹), no Livro V de Naturalis Historia, devia acontecer anualmente, pouco depois do solstício de verão:
"O Nilo começa a subir na primeira lua nova após o solstício de verão, e vai aumentando gradualmente de volume enquanto o sol passa por Câncer, chegando ao auge quando está em Leão; em Virgem o volume decresce pouco a pouco." (²)
Mas quanto, afinal, era necessário que as águas se elevassem acima do nível normal? Continuamos com Plínio:
"Com doze cúbitos a fome se manifesta, com treze há escassez, quatorze começa a trazer alegria, com quinze há segurança, com dezesseis, felicidade. O máximo transbordamento já registrado foi de dezoito cúbitos, durante o principado de Cláudio, e o mínimo foi de cinco, na época da Batalha de Farsália (³), qual grande prodígio [...]."
Cabem aqui, leitores, ao menos duas observações:
  • O cúbito (ou côvado) egípcio tinha cerca de 50 cm; o romano, um pouco menos. Plínio não explicou qual deles utilizou, de modo que, fazendo uso do valor mais alto, constatamos que, para a ocorrência de fome, haveria uma elevação de apenas seis metros, enquanto que um acréscimo de oito metros traria abundância. Os extremos registrados por Plínio seriam, respectivamente, de dois e meio e nove metros.
  • Plínio tinha um modo romano de ver os fatos, não de todo injustificável, já que ele próprio era romano e os romanos, em seu tempo, eram os "donos do mundo". Além disso, os leitores de Plínio seriam romanos também. Desde que os romanos passaram, implícita ou explicitamente, a mandar no Egito, fizeram dele a central de abastecimento de Roma, livrando-a da ameaça da fome e, por conseguinte, de uma revolta popular que poderia ter consequências incalculáveis. Por isso, não é surpresa que mencione níveis máximo e mínimo a partir de ocasiões relevantes para os romanos. A história do Egito é muito longa e muito anterior ao nascimento de certa cidadezinha insolente na Península Itálica, sendo bastante provável que, ao longo de muitos séculos, outros momentos de máxima e mínima na elevação do Nilo tenham ocorrido. 
Pois bem, finda a cheia, o que acontecia? De acordo com Heródoto, competia aos camponeses lançar sementes ao solo e deixar que seus rebanhos pisoteassem o terreno. As sementes, germinando, trariam colheitas melhores ou piores, de acordo com a cheia que precedera a semeadura. A vida dos camponeses egípcios seria, portanto, quase um paraíso... Mas não era. Como quase todos os camponeses, em quase todos os lugares do mundo, em quase todos os tempos, os do Egito trabalhavam muito, mas viam parte considerável de sua produção convertida em impostos, destinados à manutenção do faraó (com todos os seus caprichos, piramidais ou não), da nobreza, da altamente privilegiada elite sacerdotal, dos numerosos funcionários públicos (escribas, coletores de impostos, etc.) e do exército. Era muita gente dependendo do trabalho daqueles que cultivavam a terra. 
Só para completar a questão das cheias do Nilo, Plínio ainda observou: "Acrescente-se que o Nilo é o único rio que nunca emite algum odor." Talvez não tenha levado em conta algum acontecimento puntual.

(1) 23 - 79 d.C.
(2) Todas as citações de Naturalis Historia que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) 9 de agosto de 48 a.C.


terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Fogões a lenha

"Às nove horas da noite apaguei eu a candeia, e não havia no fogão nem uma brasa: o fogo foi maléfico..."
Joaquim Manuel de Macedo, As Mulheres de Mantilha

Aterrorizados pelo alarido de um burro, de um cachorro, de um gato e de um galo, ladrões fogem, a toda pressa, da casa em que se banqueteavam. Melhor para os animais, que se deliciam com uma esplêndida refeição. Uma vez satisfeitos, apagam as luminárias, e cada um trata de encontrar um bom recanto para dormir, ficando a casa em completo silêncio e às escuras.
Tarde da noite, um dos ladrões retorna. Percebe uma tímida faísca junto ao fogão, e, supondo ser uma brasa ainda viva, se aproxima, pensando em acender um pequeno facho. Mas, ai! É brutalmente arranhado pelo gato, que se encarapitara sobre o fogão. Não havia, naturalmente, brasa alguma, somente o brilho dos olhinhos vigilantes do felino. Em meio à escuridão, o meliante só pensa em fugir, não sem antes receber uma mordida do cão, estacado junto à porta, e, já do lado de fora, um coice do burro e uma valente bicada do galo.
A esta altura os leitores já sabem, suponho, que falo de Die Bremer Stadtmusikanten, um conto dos Irmãos Grimm que está por completar duzentos anos. Eu, quando era criança, amava ouvir contar essa história, mas hoje, aqui no blog, ela nos serve para mostrar que a singela brasa de um fogão a lenha ou a carvão pode ter muita importância. Então, amigos, sorrindo ou zangados, prossigam a leitura, sim? 
Forno de barro (²)
Até bem adiantado o Século XIX, a maioria das casas no Brasil tinha um grande fogão a lenha, construído em um canto da cozinha. Quem, estando fora, olhasse a chaminé, já sabia, pela fumaça, se havia comida em preparo. Panelas e tachos enormes, pesadões, enegrecidos pela fuligem no correr dos anos, eram usados para cozer lentamente os alimentos. Por essa característica do cozimento lento é que há, ainda hoje, muita gente que não hesita em afirmar que a melhor comida vem dos fogões a lenha (¹). Talvez seja mesmo só uma questão de gosto pessoal, mas é fato que em diversas tradições culinárias, distanciadas entre si no tempo e/ou no espaço, há especialidades cujo preparo é melhor em fogo moderado, demandando várias horas para o perfeito cozimento - como nos vetustos fogões a lenha. 
As cozinhas das casas-grandes coloniais ou das fazendas de café do Século XIX eram lugares movimentados, quentes no verão, é verdade, mas acolhedores no inverno e dias chuvosos. Escravas trabalhavam sob a supervisão de uma cozinheira experiente, e mesmo as senhoras não se furtavam a dar palpites. Na rotina diária, era preciso remover as cinzas, e escravos deviam rachar lenha para assegurar que o fogão estaria sempre em plena atividade. Imagine-se, pois, como seria o corre-corre na cozinha de uma fazenda, em ocasiões festivas como o Natal ou um casamento!...


Um fogão a lenha especial


Fogão a lenha do Catetinho (³)
O fogão da foto ao lado pode ser visto no Catetinho: hoje um museu, o Catetinho foi, na segunda metade da década de 50 do Século XX, a residência provisória usada pelo presidente Juscelino Kubitschek, sempre que vinha acompanhar a construção de Brasília. É óbvio que nada obstava a existência de um fogão mais moderno no local, mas quem visita o museu é informado de que o presidente era apreciador da comida feita em fogões a lenha. Para atendê-lo é que este ilustre exemplar foi construído.

(1) Folclore ou não, essa preferência sustenta a fama de muitos restaurantes que preparam comida "como na fazenda". Em lugares remotos no interior do Brasil os fogões a lenha não são, ainda hoje, de todo incomuns, mesmo em residências.
(2) Pertence ao acervo do Museu Histórico e Geográfico de Monte Sião - MG.
(3) Este fogão a lenha pertence ao acervo do Museu do Catetinho (Brasília - DF).


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quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

A Revolta de Espártaco

Espártaco era um gladiador. Como ninguém nasce gladiador, parece-me necessário explicar que, na Roma Antiga, os espetáculos de gladiadores haviam começado como um divertimento para os soldados que, lutando, mantinham a forma quando não havia guerra. Posteriormente (¹), as lutas passaram a ser uma atividade profissional, se entendermos que os "profissionais" em questão eram escravos, quase sempre selecionados entre os prisioneiros de guerra que mais impressionavam pelo vigor físico (²). Era esse o caso de Espártaco, um trácio que integrara um corpo de auxiliares do exército romano, mas que desertara e fora capturado. O que aconteceu em seguida é relatado por Aneu Floro (³) em Epitome rerum Romanarum:
O último combate de Espártaco,
na visão de um cartunista do Século XIX (⁵)
"Espártaco, Criso e Enomaus, fugindo do lugar de treinamento de Lêntulo, com trinta outros homens de semelhante condição [gladiadores], espalharam-se por Cápua, chamando escravos em seu auxílio, e, em pouco tempo, eram já dez mil homens que, não satisfeitos com a fuga, queriam a liberdade." (⁴)
As fontes apresentam alguma divergência quanto ao número de adeptos que Espártaco conseguiu arrebanhar, mas é fato que, nos três anos seguintes (73 a 71 a.C.), a Península Itálica viveu um severo conflito, no qual o exército romano foi várias vezes derrotado por gladiadores e escravos que lutavam pela liberdade - talvez houvesse nisso um fator importante para o sucesso que inicialmente obtiveram.
Não era fácil, porém, controlar milhares de homens em fúria. Afinal, as forças romanas conseguiram vencer os revoltosos. Quanto a Espártaco, no dizer de Floro, "lutando com valentia na primeira fila [de combatentes], teve a morte de um grande comandante." (⁴)
Como explicar uma rebelião de proporções tão assinaladas? Além do já citado desejo de liberdade, deve-se considerar que:
  • Os escravos eram exageradamente numerosos em Roma, em consequência do cativeiro de inimigos derrotados em combate;
  • Muitos escravos, tendo pertencido ao exército de outros povos, haviam recebido treinamento militar e, mesmo não tendo armas adequadas, eram fortes e, conforme se verificou, capazes de fazer frente ao disciplinado exército romano;
  • A chamada "Revolta de Espártaco" não foi a primeira e nem a última rebelião envolvendo escravos nos domínios de Roma (na historiografia clássica é também conhecida como Terceira Guerra Servil).
Teriam os romanos consciência do problema que criavam para si mesmos com a multiplicação de braços cativos? As consequências eram demasiado óbvias para que passassem despercebidas. Foi também Floro quem perguntou: "Por que motivo os gladiadores se revoltaram contra seus treinadores, a não ser pelo fato de que se obtinha o favor da plebe com a realização de espetáculos, nos quais supliciar o oponente vencido tornou-se uma arte?" (⁴)

(1) É opinião corrente que isso teria ocorrido por volta do final da Primeira Guerra Púnica.
(2) Autores romanos, como Júlio César, por exemplo, destacaram o fato de que gauleses e germanos, muito mais altos e mais fortes que a média da população de Roma, eram temidos pelos soldados, que somente eram capazes de derrotá-los devido à disciplina e estratégia que as forças romanas apresentavam nas batalhas.
(3) Um contemporâneo do imperador Adriano.
(4) Os trechos citados de Epitome rerum Romanarum foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) BECKETT, Gilbert Abbott à et LEECH, John. The Comic History of Rome. London: Bradbury, Evans and Co., 1851, p. 281.



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terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A bagagem de dois missionários jesuítas que pretendiam catequizar indígenas no Ceará e no Maranhão

O Século XVII está no começo. Dois jesuítas, Francisco Pinto e Luís Figueira, saindo do Colégio de Pernambuco, iniciam uma longa caminhada com o propósito de estabelecer uma missão entre indígenas no Maranhão. 
Não vão sozinhos: têm a companhia de alguns índios, já catequizados, que auxiliam no contato com grupos indígenas. Além disso, ajudam a transportar a bagagem dos dois padres. Como somos curiosos, leitores, iremos bisbilhotar o que é que carregam. Como? Há um relato interessante, feito pelo padre José de Moraes em A Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará:
"Caminhavam a pé, sem mais vitualhas que o altar portátil que levavam dois índios, algum vinho, hóstias, cera e uma pouca de farinha de pau (¹), usual sustento da terra, repartida pelas mochilas dos companheiros; sem mais outra vianda que o peixe e caranguejos, que a diligência dos índios encontrava por aquelas praias. Usavam de umas roupetas curtas para lhes ficarem mais desembaraçados os passos [...]; mas porque os charcos, pedras e lodos por onde precisamente haviam de passar eram muitos, consumidos logo nos primeiros dias os sapatos, se viram obrigados a caminhar descalços." (²)
A obra de José de Moraes somente foi escrita uns cento e cinquenta anos depois da missão de Francisco Pinto e Luís Figueira (³). Sabe-se de seu acesso a uma variedade de documentos, mas, conforme ele próprio explicou, em alguns casos seus relatos tiveram por fundamento a tradição, apenas. Apesar disso, podemos estar certos de que, ao empreenderem a viagem, os dois padres a que nos referimos entraram em um rumo de todo desconhecido para eles. Confiavam, pois, na lealdade e experiência dos indígenas já catequizados que tomavam por guias. Para a alimentação, esperavam achar pesca e alguma caça, a fim de complementar a magra dieta de farinha de mandioca. Na bagagem listada por José de Moraes, destacam-se os itens de uso religioso, a começar pela existência de um altar portátil. O mesmo autor, tratando de outras missões de catequese, faria referência ao uso de um móvel semelhante, o que nos leva à conclusão de que seu emprego era prática comum na época. 
Não foi dessa vez, no entanto, que uma missão de jesuítas foi estabelecida no Maranhão. Ao chegar à Serra de Ibiapaba, a pequena caravana foi atacada por tapuias. Francisco Pinto foi morto, assim como alguns dos índios catequizados. Luís Figueira escapou, escondendo-se no mato. Depois de sepultar o companheiro, retornou a Pernambuco. Anos mais tarde, após a expulsão dos franceses do Maranhão, foi mandado a São Luís, onde uma nova luta o aguardava, não contra grupos indígenas que rejeitavam a catequese, mas contra os colonizadores que viam em cada ameríndio um escravo em potencial.

(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 30.
(3) A primeira edição foi publicada em 1759, mesmo ano em que o autor foi deportado para o Reino, no contexto das restrições e posterior extinção da Companhia de Jesus.


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